Laudêmio: Igreja ainda cobra taxa por terrenos em nome de santos católicos
- TI Infographya
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Pouca gente sabe, mas Igreja Católica cobra taxa sobre venda de imóveis em cidades brasileiras. Mesmo criada no Brasil Colônia, a cobrança ainda tem respaldo legal.
O que aconteceu
Em várias cidades brasileiras, santos ainda figuram como donos formais de terras. Em registros cartoriais e contratos antigos, nomes como São Francisco, São José, São Pedro, São João Batista, São Bernardo e diferentes representações de Nossa Senhora — como da Conceição, do Carmo e do Livramento — aparecem como proprietários oficiais de imóveis. Na prática, a Igreja Católica atua como representante legal dessas figuras religiosas.
Moradores precisam pagar uma taxa à Igreja Católica sempre que vendem imóveis em áreas urbanas. A cobrança, chamada de laudêmio, equivale a 2,5% do valor da venda e é exigida em terrenos sob domínio da Igreja desde o período colonial. O valor vai para dioceses, paróquias ou ordens religiosas, mesmo que o imóvel esteja registrado no nome do morador no cartório.
Apesar do nome igual, esse tipo de laudêmio é diferente daquele cobrado pela União em áreas de marinha. No caso da Igreja, trata-se de uma cobrança privada, vinculada a contratos antigos de aforamento, chamada enfiteuse. Nesse regime, o morador (foreiro) tem o direito de uso da terra, mas não é o proprietário pleno. Já o laudêmio da Marinha é um encargo público, com base legal federal e arrecadação feita pelo governo.
O regime é previsto no artigo 2.038 do Código Civil de 2002, que manteve enfiteuses anteriores à nova legislação. Na prática, o morador tem apenas o "domínio útil" do imóvel, e a Igreja mantém o "domínio direto", podendo cobrar o laudêmio a cada transação. Especialistas ouvidos pelo UOL consideram a prática juridicamente válida, mas historicamente ultrapassada.
A cobrança de laudêmio em favor da Igreja é uma prática comum em diversas cidades brasileiras, e é citada em fontes acadêmicas e registros documentais. Entre os municípios apontados, figuram:
Salvador (BA): A prefeitura confirmou a existência de imóveis em áreas sob regime de enfiteuse, com cobrança de laudêmio pela Igreja Católica, especialmente em regiões centrais da cidade. Segundo a Secretaria da Fazenda, não há impacto direto na arrecadação de IPTU nem impedimento à implantação de programas públicos como o Minha Casa, Minha Vida, já que as áreas afetadas são consolidadas e de alta densidade. A pasta também afirmou que não há registro de conflitos administrativos ou judiciais entre o município e a Igreja sobre a titularidade das áreas.
Ribeirão Preto (SP): Parte do centro da cidade está situada em terrenos sob domínio direto da Arquidiocese, que cobra laudêmio de 2,5% sobre a venda de imóveis. O arquiteto e urbanista Dirceu Piccinato Jr. afirma, em artigo publicado na Revista Brasileira de Gestão Urbana em 2016, que há um número significativo de cidades na região, além de Ribeirão Preto, em que o patrimônio religioso fundacional permanece sob aforamento. O que gera entraves, como dificuldade de acesso a crédito e insegurança jurídica. A prática permanece válida com base em registros anteriores à Lei de Terras de 1850 e no artigo 2.038 do Código Civil de 2002.
Franca (SP): Decisão judicial de 1946 reconheceu a Igreja como titular das terras doadas a São Sebastião. O domínio direto permanece em nome da paróquia local, com possibilidade de cobrança em transações posteriores. O caso é citado no artigo dos juristas Vitor Frederico Kümpel e Larissa Pavan Santos, publicado na Revista dos Tribunais (2015), como exemplo clássico de manutenção do laudêmio eclesiástico com base em registros históricos.
Jaboticabal (SP): A igreja cobrava laudêmio sobre terrenos doados à padroeira Nossa Senhora do Carmo. A cobrança é reconhecida e respaldada historicamente. Em 2012, a Justiça condenou a Diocese a devolver parte do valor pago por um casal, por considerar abusiva a base de cálculo, segundo o site jurídico DireitoNosso.
Vitória da Conquista (BA): Estudo da pesquisadora Raquel Gomes Valadares, publicado em 2021 na Revista de Estudos Jurídicos da Unesp, mostra que a Igreja ainda detém parte das terras do núcleo original da cidade, com cobrança ativa de laudêmio em vendas de imóveis.
Uiraúna (PB): Segundo Maria Alanya da Costa Oliveira, pesquisadora da Ufersa (Universidade Federal Rural do Semi-Árido), moradores da cidade pagam laudêmio à Paróquia local por terrenos no centro urbano. A prática tem origem em doações fundacionais e é registrada pela Igreja.
Alexandria (RN): Pesquisa da historiadora Maria Maíra Maniçoba, da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), concluiu que boa parte do centro da cidade está em terrenos concedidos sob enfiteuse. Mesmo sem regularização plena, moradores ainda mantêm contratos antigos e, em alguns casos, pagam taxas ao senhorio, que pode incluir instituições religiosas.
O que dizem as autoridades
A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), órgão que reúne a cúpula da Igreja Católica no país e coordena suas diretrizes nacionais, informou que não irá se pronunciar sobre o assunto. Em nota, a prefeitura de Franca informou não haver registro de cobrança de laudêmio no município.
O UOL também procurou as prefeituras de Ribeirão Preto, Jaboticabal, Vitória da Conquista, Uiraúna e Alexandria. Até a publicação desta reportagem, nenhuma havia respondido aos questionamentos. O espaço permanece aberto para manifestação.
O que dizem os especialistas
A enfiteuse era uma forma de garantir que o Estado ou a Igreja mantivessem o controle territorial, mesmo delegando o uso a terceiros, afirma o historiador Guilherme Galvão Lopes, doutor pela FGV (Fundação Getúlio Vargas). "É como se fosse uma espécie de aluguel: o sujeito tinha posse, mas não era proprietário de fato, e pagava a enfiteuse ao senhorio direto", explica.
Quando a Lei de Terras foi criada, em 1850, o Império regularizou a posse formal para quem já detinha terras havia décadas ou séculos -- e isso incluiu muitas propriedades nas mãos da Igreja. Com o tempo, essas terras foram sendo herdadas, doadas ou mantidas sob domínio direto por ordens religiosas e paróquias. A estrutura permaneceu, mesmo quando a sociedade se transformou radicalmente.
Segundo o advogado tributarista Alessandro Batista, o laudêmio é legal quando fundado em aforamento registrado em cartório. "É uma compensação civil, não um tributo. A cobrança segue válida até que o foreiro [nome dado ao morador que detém o direito de uso da terra] adquira o domínio pleno do imóvel por meio da remição [ato de comprar a parte que pertence ao senhorio e encerrar a enfiteuse]".
De acordo com os especialistas, a cobrança do laudêmio encarece a venda de imóveis, trava a regularização fundiária e pode impedir o acesso a programas públicos, como o Minha Casa, Minha Vida. Como o morador não é reconhecido como proprietário pleno, há limitações para financiamento, titulação e participação em políticas habitacionais.
Essas cobranças não fazem mais sentido na configuração social atual do país, afirma Lopes. "O Brasil tem outras prioridades. Manter privilégios fundiários da Igreja com base em títulos coloniais perpetua desigualdades históricas".
Segundo Batista, a Igreja não é obrigada a prestar contas publicamente sobre os valores arrecadados com laudêmio. "Ela é uma instituição privada. A prestação de contas ocorre apenas entre os membros da Igreja, conforme o Direito Canônico".
Contestações judiciais são possíveis, mas a jurisprudência costuma validar a cobrança quando há registro regular. A cobrança depende da existência de aforamento anterior a 2003, com registro válido no Cartório de Registro de Imóveis. Os argumentos mais comuns incluem ausência de registro, abandono da terra, cláusulas abusivas e falta de qualquer contraprestação por parte da Igreja. "Há casos favoráveis a foreiros, mas são exceções", afirma o advogado.
Fonte: UOL
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