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TJMG - Jurisprudência. Terra devoluta. Aquisição por terceiro de boa fé. Impossibilidade.

JURISPRUDÊNCIA CÍVEL


Apelação cível - Ação anulatória de domínio e de título de registro imobiliário - Terra devoluta - Alienação por preferência - Lei Estadual nº 11.020, de 1993 - Anulação do ato de titulação - Poder de autotutela - Aquisição do imóvel por terceiro de boa-fé - Convalidação do ato - Impossibilidade - Recurso desprovido


- Nos termos do art. 18 da Lei Estadual nº 11.020, de 1993, ``aquele que tornar economicamente produtiva terra devoluta estadual e comprovar sua vinculação pessoal à terra terá preferência para adquirir-lhe o domínio, até a área de 250 ha (duzentos e cinquenta hectares), contra o pagamento do seu valor, acrescido dos emolumentos''.


- Comprovada a alienação de terra devoluta sem o preenchimento dos requisitos legais, em razão de informações inverídicas prestadas pelos interessados, é juridicamente admissível sua anulação e o retorno da área em benefício da população.


- A aquisição do imóvel por terceiro de boa-fé não convalida o ato eivado de ilegalidade, o que reclama a restituição de sua posse em favor do patrimônio público.


Apelação cível nº 1.0627.11.000373-8/001 - Comarca de São João do Paraíso - Apelante: Floresta Empreendimentos Ltda. - Apelado: Estado de Minas Gerais - Interessado: Jair Pereira da Cruz - Relator: Des. Marcelo Rodrigues.


ACÓRDÃO


Vistos, etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade, em rejeitar a preliminar e negar provimento ao recurso.


Belo Horizonte, 9 de março de 2023 - Marcelo Rodrigues - Relator.


VOTO


DES. MARCELO RODRIGUES (RELATOR) - Cuida-se de recurso de apelação interposto por Floresta Empreendimentos Ltda., em face da sentença de ordem nº 19, integrada pela decisão de ordem nº 28 que, nos autos da ação anulatória de domínio e de título de registro imobiliário, ajuizada pelo Instituto de Terras de Minas Gerais ITER/MG contra Jair Pereira da Cruz e Floresta Empreendimentos Ltda., julgou procedentes os pedidos iniciais, para decretar a nulidade do título e registro do imóvel matriculado em nome do primeiro requerido, sob o nº 9.621, perante o Serviço de Registro de Imóveis da Comarca de Rio Pardo de Minas/MG, medindo 70,1604ha (setenta hectares, dezesseis ares e quatro centiares), realizado na data de 17/9/2010, e, posteriormente, transferido para a ora apelante, acolhendo, ainda, o pedido de restituição da posse em favor do Estado de Minas Gerais, bem como confirmando a liminar concedida, que determinou a expedição de ofício ao Serviço de Registro de Imóveis da Comarca de Rio Pardo de Minas para bloqueio da matrícula.


Condenou os requeridos, na proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada, ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como honorários advocatícios, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor do proveito econômico obtido, consistente no montante da avaliação do imóvel (R$21.048,12, - vinte e um mil, quarenta e oito reais e doze centavos).


Por fim, fixou honorários advocatícios em favor do advogado dativo nomeado, no valor de R$583,90 (quinhentos e oitenta e três reais e noventa centavos).


Em suas razões recursais de ordem nº 24, suscita a apelante, em preliminar, a nulidade do processo administrativo que apurou as irregularidades no imóvel de sua propriedade, relativas aos títulos de venda de terras devolutas, por cerceamento de defesa, porquanto não participou do referido procedimento. No mérito, sustenta que a aquisição do imóvel ocorreu de boa-fé e de forma regular, por escritura pública, sendo averbada sem impugnação alguma. Afirma que não tinha ciência de que o imóvel adquirido, supostamente, tratava-se de terras devolutas, devendo ser aplicada a teoria da aparência. Assevera que não pode ser prejudicada por supostos atos ilícitos praticados por terceiros e que o poder-dever de autotutela da Administração Pública não poderá ser aplicado para prejudicar terceiro de boa-fé.


Contrarrazões pelo apelado (ordem nº 31). É o relatório.


Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.


- Preliminar de nulidade por cerceamento de defesa.


Suscita a apelante, em preliminar, a nulidade do processo administrativo que apurou as irregularidades no imóvel de sua propriedade, relativas aos títulos de venda de terras devolutas, por cerceamento de defesa, porquanto não participou do referido procedimento.


Sem razão, contudo.


No presente caso, a ausência de notificação da ora apelante para apresentação de defesa em procedimento administrativo voltado à apuração da invalidade da transferência de domínio de terra devoluta pertencente ao Estado de Minas Gerais a Jair Pereira da Cruz, não caracteriza violação ao art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República, aos arts. 2º e 44, da Lei Federal nº 9.874, de 1999, e art. 8º, da Lei Estadual nº 14.184, de 2002.


Isso porque, a referida sociedade empresária não foi parte do procedimento de titulação de terra devoluta estadual, como se depreende da análise dos documentos de ordem nº 3, e a decisão administrativa de nulidade da transferência de domínio, sequer constante nos autos, não teve repercussão imediata sobre sua esfera jurídica.


Destarte, a ausência de autoexecutoriedade do ato administrativo de invalidade da titulação contra terceiros tornou impositivo ao Estado de Minas Gerais, através do ITER/MG, o ajuizamento da presente ação, com a inclusão da ora apelante no seu polo passivo, a fim de obter declaração judicial da insubsistência de assentamentos realizados na matrícula do imóvel individualizado na petição inicial.


Assim, não há que se falar em nulidade de procedimento administrativo, pelo que rejeito a preliminar.


- Mérito.


Trata-se de ação anulatória de domínio e de título de registro imobiliário ajuizada pelo Instituto de Terras de Minas Gerais - ITER/MG em face de Jair Pereira da Cruz e Floresta Empreendimentos Ltda., pleiteando a anulação do título e do registro de imóvel matriculado em nome do primeiro requerido e transferido à ora apelante, em razão da não observância do requisito ``exercício da posse'' para titulação de terra devoluta, além da alegação de ter sido o título emitido para área sobreposta àquela, objeto de contrato de arrendamento firmado entre o ITER/MG e a empresa reflorestadora Florestaminas - Florestamentos S/A. Sustenta o autor da ação, ainda, a impossibilidade de negociação do imóvel antes do prazo de 10 (dez) anos, desrespeitada pelo primeiro requerido.


Terras devolutas são aquelas que não integram o patrimônio de um particular, mas, também, não possuem destinação pública, tratando-se de bens dominicais e sendo, por isso, disponíveis, desde que obedecidas as exigências legais.


As terras devolutas, caso não compreendidas entre os bens da União, incluem-se entre os bens dos Estados, a teor do que dispõe o art. 26, I, da Constituição da República.


Assim, no âmbito do Estado de Minas Gerais, a Lei nº 11.020, de 1993, estabelece:


``Art. 1º - São terras devolutas do domínio do Estado as assim definidas pela Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que lhe foram transferidas pela Constituição da República de 1891 e que não se compreendam entre as do domínio da União por força da Constituição da República de 1988.


[...]


Art. 5º - O Estado promoverá medidas que permitam a preservação do seu patrimônio natural e cultural e a utilização racional das terras públicas de seu domínio, com o objetivo de fomentar a produção agropecuária, de organizar o abastecimento alimentar, de promover o bem-estar do homem que vive do trabalho da terra e fixá-lo no campo, bem como de colaborar para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes.


...]


Art. 14 - São formas de alienação ou de concessão de terra devoluta: I - concessão gratuita de domínio; II - alienação por preferência; III - legitimação de posse; IV - concessão de direito real de uso.''


No caso dos autos, conforme certidão do Cartório de Registro de Imóveis de Rio Pardo de Minas/MG, na data de 17/9/2010, o Estado de Minas Gerais, através do ITER/MG, alienou por preferência o imóvel rural denominado ``Fazenda Estrela'', matriculado sob o nº 9.621, no Município de São João do Paraíso, o qual foi objeto do Título de Legitimação de Terras Devolutas - Rural, emitido em favor de Jair Pereira da Cruz, com fundamento na Lei nº 11.020, de 1993, e art. 26, IV, da Constituição da República.


Contudo, posteriormente, chegou à mencionada autarquia estadual denúncia informando que o primeiro requerido, assim como vários outros posseiros que obtiveram a titulação de área devoluta no Município de São João do Paraíso, não exerciam, de fato, a posse dos imóveis, não residindo neles nem tendo qualquer vinculação com a terra.


Com efeito, sobre os requisitos para se proceder à alienação por preferência, estabelece a citada Lei Estadual nº 11.020, de 1993:


``Art. 18 - Aquele que tornar economicamente produtiva terra devoluta estadual e comprovar sua vinculação pessoal à terra terá preferência para adquirir-lhe o domínio, até a área de 250 ha (duzentos e cinquenta hectares), contra o pagamento do seu valor, acrescido dos emolumentos.


§ 1º - Nos terrenos para agricultura, o ocupante provará a utilização econômica de, no mínimo, 30% (trinta por cento) da área aproveitável.


§ 2º - Nos terrenos para pecuária, o ocupante provará a utilização de, no mínimo 50% (cinquenta por cento) da área aproveitável como área de pastagem que comporte 3 (três) cabeças de gado vacum, ou similar, por alqueire geométrico.


§ 3º - No caso de exploração mista da área, o percentual mínimo de utilização econômica é de 40% (quarenta por cento) da área aproveitável.


Art. 19 - Considera-se vinculação pessoal à terra, para os efeitos desta lei, a residência em localidade que permita ao ocupante ou a seus familiares assistência permanente à área e a sua efetiva utilização econômica.''


Na hipótese, observa-se que a Administração Pública, ao alienar o imóvel ao requerido Jair Pereira da Cruz, não observou detidamente o preenchimento dos requisitos exigidos pela legislação estadual, tendo em vista a ausência de elementos que demonstrassem a vinculação pessoal à terra, como dispõe o supramencionado art. 19.


Nada obstante, é cediço que a Administração Pública, com fundamento no princípio da autotutela, pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios.


Sobre o tema, os enunciados nº 346 e 473, de Súmula do STF:


``Súmula nº 346 - A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.


Súmula nº 473 - A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.''


Portanto, uma vez que a Administração Pública tomou ciência de que a alienação do imóvel foi feita em desconformidade com a lei, tem ela o dever de anular o ato, em especial quando verificado que o mencionado requerido não comprovou o preenchimento dos requisitos da legislação estadual, notadamente o exercício da posse do imóvel, para a manutenção do título.


Ademais, observa-se que o adquirente do título, em 19/10/2010, ou seja, apenas cerca de um mês após obter a titulação da área, alienou o imóvel para a empresa Floresta Empreendimentos Ltda., ora apelante, pelo preço de R$21.048,12 (vinte e um mil e quarenta e oito reais e doze centavos), de acordo com a escritura pública de compra e venda (ordem nº 2), fato que corrobora para a ausência de vinculação pessoal à terra.


Não bastasse, foi constatado ainda que a área da ``Fazenda Estrela'', em nome de Jair Pereira da Cruz, sobrepõe a área de arrendamento de posse, objeto de contrato celebrado entre o ITER/MG e a empresa Florestaminas - Florestamentos S.A.


Destarte, diante do não cumprimento do requisito legal de exercício da posse, previsto na legislação estadual, estando demonstrada a sobreposição de áreas de arrendamento, deve ser mantida a sentença que anulou o ato de titulação.


Nesse sentido, a jurisprudência deste Tribunal de Justiça, ao tratar de casos semelhantes ao dos autos:


``Apelação cível. Ação anulatória de domínio e de título de registro imobiliário. Emissão do título de legitimação de terras devolutas. Ausência de requisitos. Anulação do registro. Poder de autotutela da administração pública. Possibilidade. Recurso desprovido. A Administração Pública, no exercício cotidiano de suas funções, está autorizada a anular ou revogar seus próprios atos, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, quando estes são contrários à lei ou aos interesses públicos, diante do princípio da autotutela administrativa. A alienação de terras devolutas do domínio do Estado de Minas Gerais deve observar os requisitos estabelecidos na Lei Estadual nº 11.020/1993. Sendo constatado que o procedimento de legitimação de terras devolutas, realizado em benefício da primeira requerida, não teria observado os requisitos previstos na Lei Estadual nº 11.020/93, sendo demonstrada a ilegalidade, pode a Administração Pública proceder à anulação de seus próprios atos, em virtude do princípio da autotutela administrativa. Ausentes os requisitos necessários para a emissão do título, a anulação do registro do imóvel é, de fato, medida que se impõe, devendo ser mantida a sentença por seus próprios fundamentos'' (Apelação cível nº 1.0627.11.000335-7/001, Rel. Des. Wilson Benevides, 7ª Câmara Cível, j. em 29/6/2021, publicação em 6/7/2021).


``Apelação. Ação anulatória. Autotutela. Alienação por preferência. A Administração pode anular seus próprios atos quando apresentarem vícios que os tornam ilegais porque deles não se originam direitos, ou revogá-los por motivo de conveniência, ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. Ausentes os requisitos para a alienação por preferência de terras devolutas, deve ser mantida a sentença que julgou procedente o pedido anulatório'' (TJMG - Apelação cível nº 1.0627.11.000342-3/001, Rel. Des. Wagner Wilson, 19ª Câmara Cível, j. em 13/5/2021, p. em 19/5/2021).


Por fim, é de se ressaltar que a apelante, ainda que tenha adquirido o imóvel de boa-fé, não pode se valer deste atributo para se manter na propriedade e posse do imóvel objeto da presente ação.


A Lei dos Registro Públicos, em seu art. 214, estabelece que ``as nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta''.


Assim, reconhecida a nulidade do ato de titulação, deve ser efetivado o cancelamento das averbações constantes no Registro de Imóveis, cabendo ao legítimo proprietário o direito de reivindicação, ainda que o terceiro interessado tenha agido de boa fé, conforme preconiza o art. 1.247, do Código Civil:


``Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.


Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.''


Desta forma, ainda que a apelante não tenha tido conhecimento prévio das irregularidades que, posteriormente, foram reconhecidas e permeiam o registro, a circunstância não autoriza a convalidação do ato.


Destarte, cancelado o registro, impõe-se o retorno do status quo ante, com a imediata e integral restituição do bem ao Estado de Minas Gerais.


Sobre o tema, discorro em obra de minha autoria:


O cancelamento é a face reversa ou negativa da inscrição. Assim como a constituição de direitos reais por ato entre vivos se faz pelo registro do título causal (direito real sobre bens móveis = título causal + inscrição). À exceção dessa modalidade direta, representada pelo cancelamento, a extinção do direito real se faz indiretamente pela transferência do direito a outra pessoa, hipótese em que aparecerá como o lado negativo da aquisição desta, pois a inscrição subsequente pelo novo adquirente do direito resulta, como desdobramento lógico e natural, como a extinção do antecedente, produzindo igual efeito do cancelamento.


O cancelamento, total ou parcial, referente a quaisquer atos de registro ou averbação é feito mediante averbação, mencionando-se o título em que se baseou e o motivo que o tiver determinado. Tem previsão nos seguintes casos:


``- a) em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado;


- [...]


- d) a requerimento da Fazenda Pública, instruído com certidão de conclusão de processo administrativo que tiver declarado, na forma da lei, a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso de imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, e a reversão do imóvel ao patrimônio público; - [...]''(RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. 4. ed. rev. amp. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 624-625).


Assim, demonstrado o vício de ilegalidade no ato de titulação do imóvel ao primeiro réu Jair Pereira da Cruz, deve ser mantida a sentença recorrida, que decretou a nulidade do título e registro do imóvel matriculado em nome do mencionado requerido sob o nº 9.621, restituindo a posse em favor do Estado de Minas Gerais.


Mediante tais fundamentos, rejeito a preliminar e nego provimento ao recurso.


Majoro os honorários sucumbenciais devidos pela apelante, observada a proporção de 50% (cinquenta por cento), ao importe de 12% (doze por cento) sobre o valor do proveito econômico obtido, consistente no montante da avaliação do imóvel.


Com o trânsito, expeça-se mandado de averbação para o cancelamento do aludido registro na matrícula imobiliária pertinente.


Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Raimundo Messias Júnior e Maria Inês Souza.


Súmula - Rejeitaram a preliminar e negaram provimento ao recurso.


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