O decreto-lei 1/2020, de 9 de janeiro de 2020, introduziu no ordenamento jurídico português um novo direito real - o direito real de habitação duradoura1. "O DHD faculta a uma ou mais pessoas singulares o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de contrapartidas periódicas". (cfr. art. 2.º).
O direito real de habitação duradoura é, portanto, um direito real de gozo limitado, pois onera um imóvel2 cuja propriedade pertence a outrem.
Sublinhe-se, no entanto, que apesar de o legislador definir o direito em análise como aquele que concede ao(s) seu(s) titular(es) - o(s) morador(es) - a faculdade de gozo de uma habitação, é óbvio que o faz com pouco rigor jurídico, uma vez que, como se sabe, o direito de gozar coisa alheia abrange as faculdades de uso e de fruição. Ora, se é inquestionável que o morador usa o imóvel para habitação, dúvidas também não existem de que ele não pode perceber os frutos e produtos que a coisa produza; designadamente, o morador não pode dar de arrendamento a habitação sobre a qual se constituiu o direito para sua residência permanente3. Consequentemente, o direito real de habitação duradoura não concede ao morador o gozo, mas apenas o uso de coisa alheia. Acrescente-se, ainda, que tal acaba por resultar do diploma em apreço quando, no art. 23.º, o legislador estatuí que o direito real de habitação duradoura se rege, no que não esteja disposto no Decreto-Lei e, no que neste não seja regulado, pelo disposto nos artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, o mesmo é dizer, pelas normas do direito de habitação.
Saliente-se, ainda, que o direito em estudo apenas pode ser constituído por contrato, como resulta dos preceitos do Decreto-Lei e das normas do Código Civil que regulam o direito real de habitação.
A simples leitura das diversas normas que compõem este novo diploma legal deixa clara a existência de uma significativa carga obrigacional associada aos estatutos dos dois direitos reais, o do morador e o do proprietário.
Passaremos a fazer referência a algumas das referidas obrigações, começando pelas que impendem sobre o morador, para só de seguida nos referirmos às do proprietário.
A constituição do direito real de habitação duradoura impõe ao morador o pagamento de uma caução (cfr. art. 6.º e al. b) do n.º 1 do art. 7. º)4 e de uma prestação pecuniária mensal, por cada mês de duração, cujo montante é estabelecido no contrato (cfr. art. 7.º, n.º 1, al. a)). Segundo a al. a) do n.º 1 do art. 9.º, ao morador cabe a obrigação de utilizar a habitação exclusivamente para sua residência permanente, embora não fique prejudicada a possibilidade de o morador utilizar parte da habitação para outro fim, desde que o faça ao abrigo de previsão contratual ou através de autorização prévia escrita pelo proprietário (cfr. n.º 3 do mesmo artigo)5. Deve ainda o morador entregar ao proprietário os montantes relativos ao Imposto Municipal sobre Imóveis (al. b) do n º 1 do art. 9.º). "Acresce que está também obrigado a promover ou permitir a realização das avaliações do estado de conservação da habitação previstas no decreto-lei e, salvo nos casos da avaliação prévia prevista no artigo 4.º e no n.º 3 do art. 9.º, a pagar o respetivo custo"; bem como, a "realizar e suportar o custo das obras de conservação ordinária na habitação" (cfr. al. d) do n.º 1 do art. 9.º)6. Ao morador compete igualmente a monitorização do estado de conservação do imóvel - que se realiza pela elaboração de uma ficha de avaliação a cada 8 anos de vigência do direito real de habitação duradoura -, no entanto, o proprietário pode assumir a iniciativa de efetuar a referida monitorização, caso em que o morador está obrigado a permitir o acesso ao imóvel (cfr. art. 10.º, n.º 2). "Quando o nível de conservação da habitação constante [desta] ficha (.) for inferior a médio e a avaliação demonstre que as anomalias existentes resultam da não realização de obras de conservação ordinária, o morador, no prazo máximo de seis a contar da data da ficha de avaliação, deve promover a realização das obras necessárias à reposição do nível médio de conservação e confirmá-lo através de nova avaliação" (cfr. n.º 3 do art. 10.º).
Por seu turno, o proprietário tem de "assegurar que a habitação é entregue ao morador em estado de conservação, no mínimo, médio" (cfr. art. 8.º, n. º 1, al. a)7 e estão a seu cargo as obras de conservação extraordinária8 - cabendo ao morador a obrigação de o avisar da necessidade delas (cfr. als. d) e e) do art. 8.º)9. Acresce que, sendo "a habitação" uma fracção de um prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal, segundo a al. b) do art. 8.º, o proprietário está obrigado a "pagar, na parte relativa à habitação, os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns do prédio e, no caso de condomínio constituído, pagar as quotizações e cumprir as demais obrigações enquanto condómino". Ademais compete ao proprietário "gerir o montante recebido a título de caução e, com a extinção do DHD, assegurar a sua devolução ao morador nos casos e termos previstos no presente decreto-lei". (cfr. al. e) deste ar. 8.º).
O direito real de habitação duradoura é um direito vitalício, para o(s) morador(es) a favor de quem é constituído- como resulta da noção constante do art. 2.º do decreto-lei -, caducando "com a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, com a morte do último deles" (cfr. art. 16.º).
Consequentemente, sob pena de violação do princípio da taxatividade, obviamente, está proibida a sua transmissão mortis causa10-11 e entre as cláusulas integrantes do negócio constitutivo não pode constar uma na qual se estipule um termo ou uma condição resolutiva. A duração vitalícia do direito deve, naturalmente, constar da inscrição registal nos termos gerais da al. b) do n.º 1 do art. 95.º do Cód.Reg.Pred. e de acordo com o expressamente determinado no art. 22.º do decreto-lei.
Sendo aplicável ao direito de habitação duradoura, no que não esteja disposto no presente decreto-lei e, no que neste não seja regulado, os artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, é inquestionável que em causa está um direito insusceptível de transmissão inter vivos (art. 1488.º do código Civil) e, consequentemente, insusceptível de ser onerado com uma garantia real que em caso de excussão conduza à sua alienação. No entanto, nos termos do n.º 1 do art. 13.º, o direito em exame pode ser onerado com uma hipoteca que vise garantir o crédito concedido ao morador para pagar, no todo ou em parte, o valor da caução e, de acordo com o n.º 5 do art. 21.º, na hipótese de incumprimento por parte do morador, iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, havendo lugar à venda executiva, o direito transmite-se ao adquirente nas condições do contrato, com exceção da duração, que passa a ser de 30 anos a contar da data da sua constituição12.
A este propósito, sublinhe-se, por fim, que a alteração da duração do direito, naturalmente, deve passar a constar da inscrição registal (cfr. art. 22.º).
O proprietário, por seu turno, naturalmente, pode alienar o seu direito, uma vez que o direito real de habitação duradoura é apenas e só um direito real de gozo limitado13.
Ao invés, o proprietário, apesar de o ser, não pode onerar o imóvel com outros direitos reais para além do direito real de habitação duradoura14, excepção feita à constituição de uma hipoteca após a constituição do direito de habitação duradoura (cfr. n. º 1 do art. 11.º).
Nos termos do n.º 3 do art. 5.º "o contrato é celebrado por escritura pública ou por documento particular no qual as assinaturas das partes são presencialmente reconhecidas". Ora, sendo certo que o legislador português, desde Janeiro de 2009, através do decreto-lei 116/2008, admite que os negócios reais sobre imóveis obedeçam, em alternativa, à forma de escritura pública ou de documento particular autenticado15, não podemos deixar de estranhar que para a constituição do direito real de habitação duradora o legislador se baste com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas.
De facto, tal opção causa-nos perplexidade, pois nenhum outro direito real imobiliário pode constituir-se por documento particular com reconhecimento presencial das assinaturas16. Ademais, é para nós no mínimo estranho que o legislador tenha optado por considerar equivalentes duas modalidades de formalização da vontade que são tão diversas, quer no seu ritual, quer na sua força probatória.
Sublinhe-se, ainda, que nos termos previstos pelo n.º 8 do art. 5.º, o legislador também se bastou com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas como forma do "acto ou contrato que determine a aquisição da propriedade pelo morador ou a transferência dos direitos deste para o proprietário, com excepção da resolução".
O direito real de habitação duradoura, como a generalidade dos direitos reais sobre imóveis, está sujeito a registo para consolidar a sua oponibilidade erga omnes perante terceiros (cfr. art. 5.º do Cód.Reg.Pred.)17. Acresce que a respectiva inscrição registal é, como em regra, obrigatória. No entanto, inexplicavelmente, o legislador não quis que se aplicassem a este direito as regras gerais da obrigatoriedade, tendo onerado o morador com a obrigação de requerer tal inscrição - não o titulador - e apenas no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato18.
Diversamente do que acontece no regime jurídico dos restantes direitos reais, o decreto-lei em apreço não integra uma parte com as regras relativas à extinção do direito real de habitação duradoura. Não o obstante, através de uma leitura complexiva do diploma, pode afirmar-se que o legislador identifica as seguintes causas de extinção do direito: a) a reunião do direito real de habitação duradoura com a propriedade na mesma pessoa; b) a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, a morte da última delas; c) o decurso do prazo de 30 anos, a contar da data da sua constituição, quando adquirido em venda executiva; d) a renúncia; d) a resolução do contrato por meio do qual se constituiu o direito.
A extinção determina a produção de dois efeitos jurídicos essenciais, apresentados no n.º 1 do art. 15.º: o morador fica obrigado à entrega do imóvel ao proprietário -excepção feita, obviamente, aos casos em que o direito se extinga por aquisição do direito de propriedade pelo morador -, e o proprietário fica obrigado à devolução da caução.
A entrega da habitação deve realizar-se nos termos descritos nos arts. 19.º e 20.º. Designadamente, extinto o direito de habitação duradoura, "a habitação deve ser entregue, livre de pessoas, no prazo máximo de três meses a contar da data do ato ou da ocorrência determinante da extinção" (primeira do n.º 1 do art. 19.º) - mas, evidentemente, sendo a coisa alienada em benefício do morador, o direito menor extinguir-se-á sem obrigação de entrega da coisa19. Simultaneamente, uma ficha de avaliação do estado de conservação tem de ser elaborada "em termos idênticos" aos previstos no art. 4.º (n.º 1 do art. 20.º)20. No entanto, obviamente, "o proprietário não pode (.) exigir a entrega da habitação em estado de conservação, no mínimo, médio se o nível de conservação inferior se relacionar com anomalias decorrentes da não realização das obras que lhe cabe assegurar nos termos do presente decreto-lei." E dizemos obviamente porque, mesmo sem o decreto-lei 1/2020, como se sabe, o abuso de direito é um acto ilícito (cfr. art. 334.º do código Civil).
Durante o período que medeia entre a extinção do direito e a efetiva entrega do prédio, que como referimos pode durar três meses, o morador pagará ao proprietário uma "indemnização" pela sua utilização a título precário, de valor diário proporcional ao montante da última prestação mensal praticada à data da extinção (n.º 2 do art. 20.º). Desconsiderando a indevida utilização da expressão "indemnização" (uma vez que inexiste qualquer ilicitude na permanência do morador na habitação durante aquele prazo, apesar o direito real já se haver extinguido), o pagamento da contrapartida pelo uso do imóvel é perfeitamente compreensível, pois continuando o bem a ser usado também a correspondente contrapartida deve ser paga ao proprietário21.
*Mónica Jardim é professora-doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde é regente da segunda turma da disciplina de Direito das Coisas, da disciplina de Direitos Reais II e da disciplina de Direito dos Registos e do Notariado. Presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais. Membro cooptado, por reconhecido mérito científico, do Conselho do Notariado de Portugal. __________
1 No preâmbulo do Decreto-Lei, o legislador - depois de reconhecer que a habitação é um direito fundamental constitucionalmente consagrado, a base de uma sociedade estável e coesa e o alicerce a partir do qual os cidadãos constroem as condições que lhes permitem aceder a outros direitos como a educação, a saúde ou o emprego e de afirmar o papel primordial da habitação para a melhoria da qualidade de vida das populações, para a revitalização e competitividade das cidades e para a coesão social e territorial - justificou a criação deste novo direito, além do mais, declarando:
"As profundas alterações dos modos de vida e das condições socioeconómicas das populações, a combinação de carências conjunturais com necessidades de habitação de natureza estrutural, a mudança de paradigma no acesso ao mercado de habitação precipitada pela crise económica e financeira internacional, e os efeitos colaterais de políticas de habitação anteriores, vieram colocar novos desafios à política de habitação e justificaram a necessidade de lançar uma Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) que contribuísse para resolver problemas herdados e para dar resposta à nova conjuntura do setor habitacional.
Em paralelo com o agravamento das dificuldades de acesso a uma habitação adequada e com as alterações relativas às necessidades sentidas pelos agregados familiares, designadamente quanto à flexibilidade e à mobilidade habitacional, o perfil do parque habitacional do país em termos de regime de ocupação não tem contribuído para dar resposta aos problemas existentes.
Com efeito, em Portugal foi fortemente privilegiado o regime de habitação própria face ao de arrendamento, por diversas razões, das quais se destacam a escassez de oferta e a existência de disfuncionalidades no mercado de arrendamento, a facilidade de obtenção de crédito hipotecário, a disponibilização de apoios do Estado à compra de habitação e aspetos culturais que valorizam a propriedade.
Em resultado, 73 % dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal são ocupados pelos proprietários, o endividamento dos agregados familiares para aquisição de habitação assume valores muito elevados, o setor do arrendamento é diminuto e pouco acessível em termos de preços e as famílias encontram-se numa situação pouco favorável à mobilidade, o que reduz as suas opções e dificulta a sua adaptação a alterações nas dinâmicas pessoais, familiares e profissionais.
Adicionalmente, coloca-se na atualidade o novo desafio de conciliar as necessidades em termos de estabilidade e de segurança na ocupação do alojamento, cruciais para o desenvolvimento da vida familiar, com as de flexibilidade e mobilidade, que derivam de uma maior mutabilidade dos percursos de vida das pessoas.
Se em muitos casos o regime de habitação própria se tem mostrado pouco adequado pela sua rigidez, pelo peso do investimento que representa e pelas dificuldades de acesso ao mesmo, por outro lado, o regime de arrendamento nem sempre é conducente à estabilidade e segurança desejáveis.
Estas desadequações afetam, de forma mais acentuada, as faixas etárias mais vulneráveis da população: os mais jovens, com menor capacidade de investimento e maiores necessidades de mobilidade, e os idosos, que já não conseguindo aceder a crédito hipotecário carecem de fortes condições de segurança e de estabilidade habitacional.
Assim, uma política de habitação que combine as duas lógicas está, portanto, melhor preparada para fazer face ao caráter mutável das necessidades de habitação das famílias ao longo do seu ciclo de vida.
Desse modo, assumem relevância soluções que constituem alternativas à aquisição de habitação própria e ao consequente endividamento das famílias e dão resposta ~s necessidades dos grupos etários mais vulneráveis, conciliando condições de estabilidade e de segurança da solução habitacional das famílias com condições de flexibilidade e mobilidade".
2 Imóvel esse que tem de estar "legalmente apto para ser utilizado para fins habitacionais" (cfr. termos da al. b) do art. 3.º).
3 Nos termos da al. g) do art. 3.º, entende-se por "residência permanente, a habitação utilizada, e forma habitual e estável, por uma pessoa ou por um agregado habitacional como centro efetivo da sua vida pessoal e social".
4 O montante da caução é estabelecido por acordo entre as partes, embora o legislador avance critérios de definição dos valores mínimo e máximo e de contrapartidas anuais a partir do décimo primeiro ano de duração do direito. De facto, segundo o n.º 1 do art. 6.º, o montante da caução "entre 10% e 20% do valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares, por freguesia, aplicável em função da localização da habitação e da área constante da respetiva caderneta predial, de acordo com a última atualização divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística, I. P., (INE, I. P.), sendo considerado o valor da menor unidade territorial para fins estatísticos em que a habitação esteja localizada no caso de indisponibilidade do valor da freguesia". Esta "caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial reduzido em 5% ao ano a partir do início do 11.º ano e até ao final do 30.º ano de vigência do DHD, por força do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo seguinte. De facto, na al. b) do art. 7. º, pode ler-se que "o morador paga ao proprietário uma prestação pecuniária anual, por cada ano efetivamente decorrido desde o 11.º ano até ao final do 30.º ano, correspondente a 5% da caução inicial e paga através de dedução na caução".
5 Isto quer dizer que, contrariamente ao que se dispõe para o arrendamento, não se inclui na faculdade de uso do imóvel o exercício de qualquer indústria doméstica. Recordamos que, nos termos do art. 1092.º Código Civil, "no uso residencial do prédio arrendado inclui-se, salvo cláusula em contrário, o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que tributada" (n.º 1) e que "é havida como doméstica a indústria explorada na residência do arrendatário que não ocupe mais de três auxiliares assalariados" (n.º 2).
6 Entendendo-se por "obras de conservação ordinária na habitação" "as obras de reparação de deteriorações na habitação resultantes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, nestas se incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a deterioração dos mesmos e a garantir um estado de conservação, no mínimo, médio" (al. d) do art. 3.º).
7 Este estado de conservação será atestado por uma ficha de avaliação, que regista as condições existentes na habitação há menos de 12 meses e que deve ser "realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, que não se encontre em qualquer situação de incompatibilidade ou de impedimento no âmbito desse processo" (cfr. art. 4.º).
8 As obras necessárias à reposição das condições de segurança, salubridade e conforto da habitação por anomalias que não sejam decorrentes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a perda ou destruição da habitação (al. e) do art. 3.º).
9 "Se o proprietário, no prazo de três meses a contar do aviso do morador referido na alínea e) do n.º 1, não iniciar as reparações, pode o morador fazê-las a expensas suas, desde que a necessidade das mesmas seja confirmada através de realização de avaliação realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, caso em que pode exigir ao proprietário o pagamento da despesa total com a realização das obras e da avaliação" (art. 9.º, n.º 3). O proprietário não está, contudo, onerado com tal obrigação sempre que as "anomalias existentes result[em] de atos ilícitos e ou do não cumprimento de obrigações por parte do morador" (ainda a al. d) deste art. 8.º).
10 No entanto, o legislador, com uma cautela despropositada, proíbe, de forma expressa, a transmissão mortis causa (art. 12.º). Recordamos que a proibição da transmissão mortis causa já decorreria da al. a) do n. º 1 do art 1476.º do Código Civil, aplicável em virtude da remissão feita pelo art. 23.º do decreto em análise.
11 Como se referirá de seguida, verificando-se a transmissão inter vivos do direito, em virtude da excussão da hipoteca que o onere, a sua duração passa a ser de trinta anos a contar da sua constituição.
12 Saliente-se que na hipótese de incumprimento por parte do morador e iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, o proprietário tem, antes de mais, "opção de compra, devendo ser citado no âmbito da ação executiva para dizer se pretende ou não exercer essa faculdade, podendo, para o efeito, utilizar o saldo da caução existente à data" (cfr. art. 21.º, n.º 1). Não exercendo opção de compra, o proprietário deve depositar à ordem do processo o saldo da caução existente à data da citação referida no n.º 1, não podendo continuar a utilizá-la, sem prejuízo de poder reclamar no processo os créditos que detenha ou venha a deter sobre o morador e vendo satisfeitas até ao valor da caução depositada as dívidas por si reclamadas com prioridade perante o exequente (cfr. art. 21.º, n.º 3 e n.º 4). Por fim, apenas no caso de a caução se revelar insuficiente, haverá lugar à venda executiva do direito real de habitação duradoura, tendo o proprietário direito de preferência. Caso o proprietário não exerça o direito de preferência, os créditos que tenha reclamado por causa do direito real de habitação duradoura serão graduados após os do credor hipotecário (cfr. art. 21.º, n.º 5).
13 Não obstante, estranhamente, o legislador sentiu a necessidade de o declarar de forma expressa, estatuindo no n.º 1 art. 11.º que "o proprietário pode transmitir livremente a terceiros a propriedade onerada com o direito real de habitação duradoura, de forma onerosa ou gratuita".
14 Cfr. o n.º 2 do art. 5.º, nos termos do qual: "a habitação deve ser entregue pelo proprietário ao morador (.) livre de pessoas, ónus e encargos, incluindo outros direitos ou garantias reais, designadamente a hipoteca".
15 De facto, através do decreto-lei 116/2008, foram alterados vários preceitos do Código Civil, no sentido de dispensar a escritura pública e passar a permitir a formalização da generalidade dos negócios jurídicos que têm por objecto bens imóveis por mero documento particular autenticado. Deste modo, a partir de 1 de Janeiro de 2009, passou a poder ser celebrado por documento particular autenticado, a título de exemplo: a aquisição, a modificação, a divisão ou a extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre coisas imóveis; a cessão de créditos hipotecários, quando a hipoteca recaia sobre imóveis; os actos de constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação ou alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis; os actos de constituição e de modificação de hipotecas, a cessão destas ou do grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos hipotecários; as divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditários, societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; a doação de imóveis; os actos de constituição e liquidação de sociedades civis, se esta for a forma exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade; a constituição ou modificação da propriedade horizontal; a constituição ou modificação do direito real de habitação periódica; todos os demais actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre imóveis, para os quais a lei não preveja forma especial; os actos de alienação de herança ou de quinhão hereditário, quando existam bens cuja alienação anteriormente devesse obedecer à forma de escritura pública. Saliente-se que também o art. 80.º do Código do Notariado foi alterado, sendo revogado o princípio, que era basilar do ordenamento jurídico português, segundo o qual estavam sujeitos à forma de escritura pública os actos que importassem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis, passando a exigir-se apenas que tais actos sejam formalizados por documento particular autenticado. Sublinhe-se, por fim, que em Portugal, tem competência para autenticar documentos particulares, além do notário, os conservadores/registradores, as câmaras de comércio e indústria, os advogados e os solicitadores. Portanto, estes agentes, com Decreto-Lei n.º 116/2008, passaram a poder dar forma à generalidade dos actos sujeitos a Registo predial. E isto, em pé de igualdade, no que respeita à sua validade, com a escritura pública.
16 É claro que as partes não deixam de poder escolher o documento particular autenticado, pois, nos termos do n.º 1 do art. 364.º Código Civil, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, este só não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
17 Nos termos do n.º 2 do art. 5.º, o registo só não é condição para consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real, tendo por isso um efeito meramente enunciativo ou de publicidade notícia, se em causa estiver uma aquisição fundada na usucapião, uma servidão aparente ou factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados. Saliente-se, por fim, que apenas quanto à hipoteca o registo assume uma função constitutiva (cfr. o n.º 2 do art. 4.º do Cód.Reg.Pred. e o art. 687.º do Código Civil).
18 Foi o decreto-leii 116/2008, através do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., que impôs, em regra, a obrigação de solicitar a inscrição registal, sob pena de se ser responsabilizado pelo pagamento de quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento (cfr. os n.os 1 do art. 8.º-D do mesmo diploma legal). De acordo com a redacção actual do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos activos do facto sujeito a registo. E isto, no prazo de dois meses (cfr. art. 8.º-C do Cód.Reg.Pred.).
19 No caso de extinção do direito real de habitação duradoura em virtude da aquisição da propriedade por parte do morador, o n.º 2 do art. 13.º estatuí que a hipoteca se transfere para a propriedade. Ora, esta solução não encontra paralelo no n.º 3 do art. 699.º (nos termos do n.º 2, "se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito"; porém, adianta-se no número seguinte, se a extinção do usufruto resultar da aquisição da propriedade pelo usufrutuário, "a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado"), nem no art. 1541.º ("extinguindo-se o direito de superfície perpétuo, ou o temporário antes do decurso do prazo, os direitos reais constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar separadamente as duas parcelas, como se não tivesse havido extinção, sem prejuízo da aplicação das disposições dos artigos anteriores logo que o prazo decorra).
20 Inexistindo tal avaliação, "o proprietário pode assegurar a sua realização, caso em que tem direito a ser pago da correspondente despesa, bem como da despesa com as obras que, em função dessa avaliação, sejam necessárias para dotar a habitação de um estado de conservação, no mínimo, médio" (ainda o n.º 1 do art. 20.º). Estas despesas podem ser deduzidas no saldo da caução e o proprietário dispõe de um ano para devolver o saldo remanescente.
21 Na hipótese de o morador não cumprir estas obrigações (que já não são reais, uma vez que nascem após a extinção do direito real), poderá o proprietário exigir a imediata entrega da habitação e uma indemnização (cujos os montantes a ser pagos, agora sim, decorrem da ilicitude da conduta do morador) calculada nos termos do n.º 3 do art. 19.º: "por cada dia decorrido (...) do início da falta de pagamento da indemnização, correspondente ao dobro do valor diário da última prestação mensal praticada, podendo, para o efeito, o proprietário utilizar a caução existente".
Atualizado em: 23/9/2020 08:50
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