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Proposta de alteração do Código Civil ameaça sobrevivência dos Ofícios da Cidadania


A comissão responsável por apresentar o anteprojeto de revisão do Código Civil aprovou no último dia 4 a versão final do texto do Livro de Direito da Família. Dentre os dispositivos, os cartórios de registro civil de pessoas naturais (RCPNs) foram agraciados com a proposta de gratuidade: do procedimento pré-nupcial (que substituirá a habilitação do casamento civil); do registro da união estável e sua conversão em casamento; bem como a previsão de que caberá ao oficial verificar na base de dados do Serp a idade, a capacidade e o estado civil dos nubentes, sinalizando a dispensa de apresentação de certidão atualizada.


A aprovação de gratuidade integral e ilimitada desses atos ameaça a sobrevivência dos RCPNs, elevados à condição de Ofícios da Cidadania pela Lei nº 13.484/2017, e que são responsáveis por registrar os principais fatos da vida humana: nascimento, casamento e óbito.


Parece estarmos exagerando? Vejamos.


O site Justiça Aberta, da Corregedoria Nacional de Justiça, informa que o Brasil tem hoje 13.048 serventias extrajudiciais [1], sendo 7.222 de RCPNs. Numericamente, estão mais próximos da população do que uma unidade judiciária [2] ou delegacia de polícia [3], sendo que em distritos mais remotos pode não ter agência dos correios ou lotérica, mas há cartório. Talvez por essa capilaridade é considerada a instituição mais confiável do país [4].


Ofício deficitário


Por outro lado, estima-se que 2.592 unidades extrajudiciais são deficitárias [5], ou seja, cerca de 20% não são auto-sustentáveis, uma vez que as despesas superam o faturamento. Estes cartórios sobrevivem precariamente, porque nem todos os tribunais implementaram a renda mínima [6], auxílio que necessita de fonte de custeio contínua, e que, quando existente, muitas vezes é insuficiente para saldar os custos da atividade registral.


Note-se que não ser classificado como deficitário não significa ter faturamento satisfatório ou ser muito rentável. Ao contrário, a maioria dos oficiais não recebe remuneração equivalente à de outras carreiras jurídicas com a mesma formação, dedicação e responsabilidade.


Uma pesquisa no site Justiça Aberta confirma o fato, cabendo ressaltar que a arrecadação lá informada é a receita semestral e bruta, devendo ser abatidos os repasses destinados a outras entidades. E com a sobra, o titular deve arcar com suas despesas pessoais e do cartório, como por exemplo aluguel do estabelecimento, tributos, equipamentos, internet, energia, papel de segurança, contador, material de expediente, salário dos funcionários e encargos trabalhistas.


Esses dados confirmam a dura realidade dos cartórios de RCPN, que em regra estão localizados em distritos e cidades pouco povoadas, e que tem dentre suas atribuições principais lavrar registros de nascimento e de óbito, cuja gratuidade é constitucionalmente assegurada. Além disso, outros atos também podem ser gratuitos se reconhecida a hipossuficiência do interessado.


Atualmente, a renda principal dos RCPNs é constituída pela emissão de segunda via de certidões, das habilitações de casamento civil e do eventual ressarcimento dos atos gratuitos, proveniente de fundo sustentado pelos próprios cartórios, cujo valor é variável e nem sempre ressarce integralmente.


Caso seja aprovada a alteração no Código Civil, instituindo-se gratuidade integral para o casamento civil e dispensando a apresentação de certidões, será extinta a principal fonte financeira que sustenta os Ofícios da Cidadania, inviabilizando a atividade.


O resultado será agravamento do sub-registro de nascimento e de óbito; dificultar o acesso à cidadania e à justiça; aumento da insegurança jurídica, ao prejudicar a prevenção de fraudes, falsificações de registros e pagamentos de benefícios indevidos por falta de cancelamento de CPFs.


Essa realidade é desconhecida da maioria da população e de muitos operadores do direito, que equivocadamente ainda acreditam na lenda de que os cartórios são herdados de pai para filho, só “carimbam papel” e  são “minas de dinheiro”.


A serventia extrajudicial é uma delegação pública exercida em caráter privado, o que significa que o titular é aprovado em concurso público e periodicamente sofre fiscalização pelo Poder Judiciário, que verifica o cumprimento das obrigações legais e normatizações do CNJ, inclusive quanto à segurança tecnológica, envio de informações para o Sirc no prazo de 24 horas, repasse de valores para os Tribunais de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública, pagamento de tributos municipais como o ISS e os vinculados a folha de salários, já que os empregados são celetistas.


Obrigações do cartório


O cartório funciona como uma empresa, com todos os custos, encargos fiscais e trabalhistas de uma atividade comercial, mas não pode usufruir de benesses legais, ainda que tenha faturamento de microempreendedor por exemplo. A responsabilidade do registrador é pessoal e a tributação recai sobre a pessoa física. Portanto, não usufrui das prerrogativas de um servidor público nem do regime simplificado de tributação de um empresário.


Por outra perspectiva, é importante observar que a referida proposta legislativa contraria a tendência do CNJ de valorizar e ampliar as atribuições dos RCPNs, como ocorreu ao regulamentar a lavratura de termos declaratórios de união estável [7], o que contribui tanto para sua auto sustentabilidade quanto para a desjudicialização; bem como pelas parcerias em campanhas de utilidade pública como o “Registre-se” e a de doação de órgãos.


Concluímos com a coerente frase do desembargador aposentado José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo: “O Estado não pode delegar uma atividade e depois obrigar que o delegatário faça aquilo de graça, não há almoço grátis”. [8]


Espera-se que a coerência, razoabilidade e bom senso iluminem os parlamentares ao analisar essa proposta de alteração do Código Civil e os Ofícios da Cidadania possam continuar cumprindo sua missão.

 

[6] Provimento CNJ nº 81/2018.

[7] Provimento CNJ n. 141/2023.


Fernanda Maria Alves Gomes

é registradora civil em Fortaleza e mestre em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).



Fonte - Conjur

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