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Artigo - Retenção nos distratos de imóveis: entre o direito e a narrativa

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    TI Infographya
  • há 18 horas
  • 7 min de leitura

Recente voto proferido pela ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial nº 2.106.548/SP, tem trazido certo alarido ao setor imobiliário. A referida decisão firmou o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) deve se sobrepor à Lei dos Distratos (Lei 13.786/2018) nas rescisões de contratos de compra e venda de imóveis na planta ou de lotes.


Na prática, o entendimento afasta a aplicação da penalidade que representa a perda de 50% dos valores pagos pelo consumidor-adquirente em hipóteses de distrato sem atraso de obra, retornando essa penalidade ao patamar máximo de 25% de perda dos valores pagos,  percentual que sempre refletiu o entendimento dos tribunais pátrios até a edição da referida lei.


O segmento imobiliário logo se apressou em reagir ao voto da ministra, por meio de artigos que defendem o setor em tom alarmista, chegando alguns a afirmar que a decisão teria “transformado as incorporadoras em bancos”, obrigando-as a manter “reservas técnicas de capital com alta liquidez, prontas para honrar devoluções em distratos repentinos”, como afirmou Bruno Amatuzzi (2025), em artigo publicado na revista Metro Quadrado.


Outro argumento recorrentemente usado é o de que a Lei dos Distratos teria sido criada para conter um suposto desequilíbrio no setor, resultante da chamada “crise dos distratos”, entre 2014 e 2018, motivada, segundo se diz, pela alta dos juros naquele período, com taxas de distrato chegando a 40% em alguns projetos.


Mas será mesmo que o entendimento da ministra “transforma incorporadoras em bancos”? Será que essa crise foi apenas efeito da alta de juros? Ou estaríamos diante de uma leitura parcial dos fatos, que ignora o contexto mais amplo da relação entre consumidores e construtoras?


A suposta ‘transformação em bancos’

É difícil sustentar que a redução da penalidade de 50% para 25% implique “transformar incorporadoras em bancos”, quando, até 2018, ano da edição da Lei dos Distratos, as incorporadoras sempre operaram com lucro sob a jurisprudência que limitava a multa a 10% ou 20%. Agora, escandalizam-se com a fixação em 25%, o que, na verdade, reforça o equilíbrio contratual.


O direito de retenção de até 25% dos valores pagos em hipótese de distrato nada mais é que a regra geral do comércio brasileiro, aplicável a diversos contratos de consumo, como pacotes de viagem, cursos de idiomas ou compra de veículos. Trata-se de entendimento consolidado, amparado no CDC, no Código Civil e no princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade, que veda estipulações desproporcionais entre as partes.


Como ensina Cláudia Lima Marques (2022), cláusulas penais abusivas devem ser reduzidas à proporcionalidade, sob pena de violar a boa-fé objetiva e a função social do contrato.


Da mesma forma, Rizzatto Nunes (2021) ressalta que o artigo 51, IV, do CDC veda cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.


O STJ também já firmou entendimento de que “a cláusula penal não pode servir de fonte de lucro para o incorporador” (Brasil, STJ, REsp 1.723.075/SP, 2018), reforçando o caráter de limitação e não de benefício econômico da penalidade.


A crise dos distratos e a omissão sobre os atrasos

Embora pouco se comente a respeito, a chamada “crise dos distratos” não foi movida apenas pela alta de juros, mas também, e principalmente, pela crise de atrasos na entrega de imóveis. Este foi um fenômeno que assolou o mercado brasileiro durante o chamado “boom imobiliário”, entre 2006 e 2015.


Naquele período, o país viveu uma verdadeira epidemia de atrasos: incorporadoras lançaram empreendimentos em ritmo acelerado, impulsionadas por crédito farto e forte demanda, mas não se prepararam adequadamente para entregar as obras dentro dos prazos contratuais  que, diga-se, foram estipulados por elas próprias em seus  contratos de adesão.


O resultado foram milhares de consumidores frustrados, com imóveis que demoravam anos além do previsto para ficarem prontos, gerando uma onda de ações judiciais em todo o país.

É nesse contexto que se deve compreender o aumento dos distratos, muito mais como consequência da inadimplência das próprias  construtoras do que como um suposto oportunismo dos compradores.


A distorção econômica e o ‘lucro duplo’

Quando um consumidor desiste da compra de um imóvel, a construtora, além de reter 25% dos valores pagos, recupera o imóvel para revendê-lo, geralmente mais valorizado.


Esse fato, muitas vezes ignorado, revela o potencial desequilíbrio do Sistema trazido pela Lei dos Distratos: se uma construtora revende sucessivamente um mesmo imóvel após distratos sucessivos, retendo metade do valor em cada operação, poderá, ao final, auferir montante superior ao próprio preço integral do imóvel, além de conservar o ativo físico.


É um cenário que, sem exageros, representa uma vantagem econômica desproporcional, incompatível com os princípios do equilíbrio contratual e da boa-fé objetiva.


A realidade do consumidor e o desequilíbrio processual

Mas, na realidade, a vida real apresenta contornos ainda mais perversos contra os consumidores.


Na prática, os consumidores, ao realizarem o distrato extrajudicial, assinam um termo de distrato que autoriza a imediata liberação do imóvel para revenda pela construtora e, ainda assim, a maioria não recebe um centavo do que pagou.


Acabam tendo de bater às portas do Poder Judiciário para requerer a restituição dos valores, pagando advogados e se submetendo a uma longa e sofrida jornada de anos a fio (muitas vezes mais de uma década) até obter uma condenação definitiva em seu favor.


E isso porque as construtoras lutam ferrenhamente nos tribunais para não devolverem o dinheiro recebido de seus clientes.


Quando o consumidor finalmente acredita que a vitória chegou, depara-se com uma nova etapa: o cumprimento de sentença. Nela, surgem novos recursos, estratégias de blindagem patrimonial e tentativas de ocultar bens.


Não é raro que grandes empresas do setor, com capital aberto e lucros declarados publicamente, não apresentem saldo algum quando submetidas a bloqueios via sistema Sisbajud.


Some-se a isso um sistema de justiça que, em muitos aspectos, acaba favorecendo os devedores em detrimento dos credores, com normas e julgados que dificultam a satisfação do crédito.


Alguns exemplos são a própria Lei de Recuperação Judicial, que, ao longo dos anos, vem sendo desvirtuada de sua finalidade original, convertendo-se, na prática, em um instrumento de perdão quase integral das dívidas empresariais, onde muitos credores acabam recebendo apenas 30% ou menos do que lhes é devido, quando não ficam no zero….


Outro exemplo é a Lei 14.195/2021, que reforçou a prescrição intercorrente na execução, reduzindo o tempo útil para que o credor consiga reaver o que lhe é devido e favorecendo sobremaneira os devedores.


Há, ainda, decisões que endurecem as regras da desconsideração da personalidade jurídica e impõem sucumbência mesmo quando o pedido de desconsideração não é acolhido, uma tendência que, na prática, desestimula a busca pela efetividade das decisões judiciais.


E a prova disso é que executar um crédito no Brasil tornou-se tarefa árdua, demorada e repleta de obstáculos.


A situação chegou a tal ponto que ensinar sobre como executar sentenças virou um mercado próprio.


Há até magistrados que deixaram a carreira para viver de cursos on-line, ensinando como atuar em execuções e, ironicamente, como blindar empresas contra execuções judiciais.


Um sintoma claro de que algo vai mal na cultura da responsabilidade empresarial.


A assimetria entre o discurso empresarial e a realidade do consumidor

A construção civil é um setor importante para a economia e o emprego, assim como tantos outros diversos setores o são, de forma que não deveria gozar de privilégios jurídicos que a isentem do cumprimento das mesmas regras que regem os demais ramos empresariais, igualmente relevantes e igualmente submetidos às normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC).


Vale recordar que a promulgação do CDC, em 1990, representou uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira no campo das relações privadas.


O diploma consagrou princípios de equilíbrio contratual, boa-fé objetiva e transparência, estabelecendo balizas éticas e jurídicas indispensáveis para conter abusos do poder econômico e proteger o consumidor como parte vulnerável nas relações de mercado.


Por isso, não se deve, sob qualquer pretexto, admitir leis ou interpretações judiciais que esvaziem ou derroguem seus comandos estruturantes, sob pena de retrocedermos em direitos fundamentais arduamente conquistados após décadas de assimetrias nas relações de consumo.


O discurso que pinta as construtoras como vítimas ignora a realidade de milhares de consumidores que perderam economias de uma vida, enfrentando litígios de anos, enquanto empresas continuam a anunciar lucros recordes e lançamentos em alta.


Para se ter uma ideia da força do setor, de acordo com dados da Abrainc, o mercado imobiliário já vinha registrando crescimento superior a 20% em lançamentos e vendas novas em 2024,  ou seja, antes mesmo da decisão do STJ.


Isso demonstra que o segmento mantinha sólida performance e alta lucratividade, o que reforça que o recente entendimento da corte não o inviabiliza, mas apenas restabelece o equilíbrio de forças entre partes desiguais.


Conclusão

Em síntese, o voto da ministra Nancy Andrighi está longe de “transformar incorporadoras em bancos”, como sugerem algumas manchetes.


Na realidade, recoloca o debate jurídico em seu eixo de justiça, reafirmando que o CDC permanece aplicável às relações de compra e venda de imóveis na planta, garantindo o equilíbrio contratual e a vedação ao enriquecimento sem causa.


O que se vê é apenas a restauração de um princípio basilar: contratos devem ser instrumentos de equilíbrio e não de opressão econômica.


Mais do que uma disputa de percentuais, o tema dos distratos revela o desafio permanente de assegurar que a força econômica não se sobreponha ao direito, e que o sonho da casa própria não se transforme em um pesadelo judicial.


Referências

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Fonte: Conjur

 
 
 

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