APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE NULIDADE DE TESTAMENTO - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO - TESTAMENTO PÚBLICO LAVRADO EM HOSPITAL, DIAS ANTES DO FALECIMENTO DO TESTADOR - PRESUNÇÃO DA CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA - PROVA CABAL ACERCA DA FALTA DE DISCERNIMENTO E LUCIDEZ NO ATO DE TESTAR - AUSÊNCIA - PROVA PERICIAL INCONCLUSIVA - ÔNUS DA PROVA - RECURSO PROVIDO
- O testamento público é negócio jurídico solene, devendo ser cumpridas as formalidades exigidas pela lei, sob pena de nulidade, sabendo-se que, além da forma prescrita, é essencial que o testador tenha capacidade e discernimento, na forma dos arts. 1.860 a 1.864 do Código Civil.
- Para a incapacidade implicar a nulidade do testamento, deve-se apresentar prova cabal acerca da falta de discernimento e lucidez do testador, no ato de testar, o que não se caracteriza apenas pela idade avançada e condição de saúde delicada, competindo ao interessado comprovar a existência do vício na declaração da real intenção de testar.
- No caso concreto, extrai-se do conjunto probatório que, a despeito da saúde debilitada do testador, que padecia de doença degenerativa, possuía ele o discernimento necessário para a prática do ato, o que impõe a reforma da sentença de procedência, sabendo-se que o magistrado, destinatário das provas, não se encontra vinculado à prova pericial, podendo decidir segundo o seu livre convencimento motivado.
- Recurso provido.
Apelação cível nº 1.0000.21.273006-3/001 - Comarca de Belo Horizonte - Apelante: Fernanda Ribeiro - Apelado: Lucas Alvarenga Ribeiro - Relatora: Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível Especializada do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 13 de abril de 2023 - Teresa Cristina da Cunha Peixoto - Relatora.
VOTO
DES.ª TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO - Conheço do recurso, reunidos os seus pressupostos de admissibilidade.
Inicialmente, gostaria de consignar que, em sessão pretérita, retirei o processo de pauta, após as sustentações orais produzidas. Solicitei que, inclusive, fossem-me encaminhadas e, novamente, debrucei-me, longamente, na matéria dos autos, com pesquisa em tratados nacionais e alienígenas, já que a questão é das mais tormentosas, pois envolve ato de última vontade, sendo evidente que é a intenção, ou não, do falecido que haverá de ser interpretada pelo Judiciário, dando ``voz'' a quem já não está mais entre nós. Permaneci com o processo, por tempo superior ao legal, mas precisava da reflexão para acalmar a minha consciência e ter certeza de que o caminho trilhado era aquele espelhado no processo.
Trata-se de ação de nulidade de testamento ajuizada por Lucas Alvarenga Ribeiro, em face de Fernanda Ribeiro (documento nº 2), afirmando resumidamente que teve conhecimento da morte de seu pai, o Sr. Francisco Everton Ribeiro, no dia 21/2/2015, sem que lhe fosse comunicada a internação hospitalar dele dias antes, aduzindo que era filho único e que tinha um ótimo relacionamento com o genitor.
Alegou que, no dia 19/2/2015, foi realizada a doação de um imóvel de propriedade do de cujus, ``constituído pelo apartamento nº 102, situado na rua Desembargador Pedro Licínio, bairro Ouro Preto, nesta capital, ao Sr. Humberto Ribeiro, irmão do falecido, mediante lavratura de escritura pública, realizada no próprio hospital. No mesmo dia, foi lavrada escritura pública de testamento, contemplando a Sr.ª Fernanda Ribeiro, sobrinha do Sr. Francisco e prima do autor, como sua beneficiária, cabendo a esta 50% (cinquenta por cento) de todos os seus bens''.
Argumentou, porém, que, na data citada, o testador não tinha o necessário discernimento para os atos da vida civil, como se extrai dos prontuários médicos carreados, na medida em que o genitor padecia de esclerose lateral amiotrófica, pneumonia grave e depressão, encontrando-se ``arresponsivo, desacordado, sem atender a estímulos ou testes físicos, com bradicardia sintomática e 30 (trinta) batimentos cardíacos por minuto'', padecendo o negócio jurídico de nulidade, notadamente porque o médico que atestou a capacidade não examinou o paciente, o que foi levado a conhecimento, inclusive, da autoridade policial, requerendo, por isso, a procedência do pedido.
O MM. Juiz de Direito da 10ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte julgou procedente o pedido inicial, para declarar a nulidade da escritura pública de testamento (documento nº 148), ao fundamento de que ``conforme exame dos prontuários médicos do testador, no período em que este ficou internado, é possível inferir que Francisco Everton Ribeiro já se apresentava gravemente enfermo e com capacidade de discernimento reduzida desde o momento da sua entrada no hospital'', corroborando o laudo pericial a incapacidade de discernimento do de cujus, concluindo que, ``tendo sido comprovado, no caso dos autos, que o estado de saúde do testador era complexo, tanto que sobreveio o óbito dois dias após ser lavrada a Escritura Pública de testamento, a decretação de nulidade desta é medida impositiva''.
Inconformada, apelou a ré (documento nº 151), suscitando preliminar de cerceamento de defesa, porquanto, ``diante da elaboração de um laudo pericial indireto e indiscutivelmente inconclusivo, como será revolvido de forma mais aprofundada no próximo tópico, cumpria ao julgador deferir a realização da prova oral, sendo esta a única capaz de demonstrar a existência ou não de capacidade do testador''.
Sustentou, no mérito, que ``a doença ELA afeta, inclusive em suas manifestações mais severas, apenas questões neuromotoras de seu portador, mas não psíquicas e mentais'', bem como que ``o paciente, no dia anterior ao falecimento, tinha total discernimento, já que, mesmo com dificuldades de fala, conseguiu transmitir ao corpo médico suas próprias conclusões sobre a doença, além de fazer inequívocas escolhas acerca de sua alimentação'', arguindo que, como a perícia foi realizada de forma indireta, não havia como atestar o quadro depressivo do falecido.
Asseverou que o testador encontrava-se consciente e que o perito é contraditório e incongruente com os documentos utilizados, pontuando que ``a conclusão do laudo pericial, considerada como verdade absoluta pelo juízo de piso, cuida-se de mera possibilidade de situação fática, e não uma afirmação do que de fato aconteceu'', entendendo pela necessidade de preservação da real vontade do falecido.
Concluiu que, ``ainda que houvesse, no caso dos autos, qualquer vício formal no testamento (o que não há), deve-se, de qualquer forma, fazer prevalecer a real vontade do testador, que, sem dúvidas, foi a de ajudar e beneficiar a sobrinha, que lhe acompanhou a vida inteira e prestou os mais sinceros cuidados no fim da vida, como se verdadeira filha fosse'', pugnando pelo provimento do recurso.
Foram apresentadas contrarrazões (documento nº 157), em óbvias infirmações.
Em 17/12/2021, o processo foi distribuído por dependência na 15ª Câmara Cível, mas redistribuído nesta 8ª Câmara Especializada, nos termos da Resolução nº 977/2021, em 25/4/2022.
Feito o necessário resumo do caso. Limita-se a controvérsia recursal ao exame da adequação da sentença que entendeu pela incapacidade de testar do Sr. Francisco Everton Ribeiro, no dia 19/2/2015, em hospital desta cidade, dois dias antes de seu falecimento, em 21/2/2015, extraindo-se da escritura pública de testamento de f. 436/439 do documento único gerado que ele, tendo um único filho, o autor da ação, dispôs da metade de seu patrimônio em favor da ré, sua sobrinha Fernanda, nos seguintes termos:
``Sobre o tema debatido nos autos e antes mesmo do exame da preliminar suscitada no apelo, destaco que o doutrinador José da Silva Pacheco considera que o `testamento é o ato unilateral revogável, pelo qual alguém dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois de sua morte, reconhece o filho extraconjugal, nomeia tutor dos filhos, impõe condições de incomunicabilidade ou inalienabilidade temporária ou vitalícia, bem como faz certas manifestações de última vontade' (Inventário e partilhas na sucessão legítima e testamentária, p. 296)''.
No tocante aos requisitos essenciais do testamento público, estabelece o art. 1.864, do Código Civil de 2002:
``Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:
I - ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;
II - lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.
Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.''
Dessa forma, o testamento público é negócio jurídico solene, devendo ser cumpridas as formalidades exigidas pela lei, sob pena de nulidade, sabendo-se que, além da forma prescrita, é essencial que o testador tenha capacidade e discernimento, dispondo os arts. 1.860 e 1.861 do Código Civil:
``Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.
Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.
Art. 1.861. A incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade.''
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery esclarecem que, ``como todo negócio jurídico, o testamento requer agente capaz (CC 104 I). Isto significa afirmar que, para testar validamente, o testador deverá estar no uso e gozo de plena capacidade civil: há de ter mais de 16 anos (CC 1860 parágrafo único) e não sofrer de moléstia, temporária ou perene, que o possa impedir de discernir acerca daquilo sobre o que está dispondo.'' (NERY, Rosa Maria de Andrade; JÚNIOR, Nelson Nery. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3. ed. RT. p. 856).
Ao comentar o art. 1.860 do Código Civil, Cristiano Imhof também elucida:
``A capacidade testamentária ativa é a regra, como de resto se dá com a capacidade de fato em geral, cumprindo provar a exceção, isto é, a incapacidade.''
TJSP: ``Há mesmo uma presunção da capacidade testamentária, somente infirmável mediante prova segura de que, no momento de testar, estava o testador privado de intelecção e de volição, a tanto não servindo mesmo a alegação de doenças degenerativas, como já se decidiu, e com especial pertinência à hipótese (v. g. TJ/MG, Ap. Civ. 1.0607.04.019962-4/001). Isto porque, consoante salienta Mauro Antonini, que colaciona o aresto citado, a incapacidade do atual art. 1.860 do CC é aquela que importa verificar no exato momento da prática do ato (in CC comentado. Coord.: Min. Cezar Peluso. Manole. 4. ed. p. 2188)'' (Código Civil interpretado e anotado artigo por artigo. 6. ed. Atlas. p. 1850).
Entende-se, portanto, que, para a alegada incapacidade implicar a nulidade do testamento, deve-se apresentar prova cabal acerca da falta de discernimento e lucidez, no ato de testar, o que não se caracteriza apenas pela idade avançada e condição de saúde delicada do testador, competindo ao interessado comprovar a existência do vício na declaração da real intenção de testar.
Partindo-se de tais premissas, no caso concreto, verifica-se que o Sr. Francisco Everton Ribeiro foi hospitalizado, no dia 14 de fevereiro de 2015, no Hospital Mater Dei, nesta capital, em virtude de intercorrências causadas pela ELA - esclerose lateral amiotrófica, notadamente, insuficiência respiratória secundária à doença neuromuscular, permanecendo no CTI por cerca de 36 horas. Após obter alta para apartamento, evoluiu negativamente com a necessidade de oxigenoterapia, através de BIPAD, apresentando ainda pneumonia e dificuldade de alimentação, até que veio a óbito no dia 21 do mesmo mês, constando da respectiva certidão que a causa da morte, atestada às 15:42h, foi choque séptico, pneumonia e esclerose lateral amiotrófica (f. 493 do documento único gerado).
Dos prontuários médicos carreados, vê-se que, nos primeiros dias de internação, o testador se mostrava lúcido, alerta, cooperativo e orientado, sendo que, no dia 18/2/2015, teve uma piora, constando da anamnese de f. 193 que o médico o encontrou prostrado, desanimado, relatando a acompanhante que o Sr. Francisco não conseguia falar desde o dia 17.
Consta da anotação médica de f. 212, de 00:40h do dia 19/2/2015, que o paciente apresentou bradicardia, não respondendo a qualquer comando, relatando a acompanhante médica, a ora requerida, por pertinente, que a frequência cardíaca chegou a 30 BPM, encontrando-se o paciente arresponsivo, melhorando espontaneamente após alguns minutos. O médico relatou em seguida, entretanto, que o paciente estava ``alerta, um pouco agitado, com esforço respiratório leve, queixando falta de ar''.
A nutróloga, por sua vez, às 8:42h do dia 19 de fevereiro, relatou desnutrição grave em razão da ingestão oral insuficiente, com o registro da relutância do paciente na realização da gastrostomia e SNE, ``sendo optado tomar medidas não invasivas de suporte de vida, incluindo não realizar TQT ou TOT para suporte ventilatório.'' (f. 214).
Às 12:35h do mesmo dia, o médico encontrou o Sr. Francisco tranquilo, com melhoria do padrão respiratório, alerta e cooperativo (f. 219), mas, no dia seguinte, 20/2/2015, às 10:30h, ele se encontrava prostrado, desanimado e sem verbalizar (f. 236).
Em 21/2/2015, às 9:32h, o paciente estava sonolento, mas respondendo ao chamado, com a nota de se encontrar alerta, cooperativo e entristecido (f. 268), tendo, às 15:20h, apresentado assistolia e parada respiratória, constatando-se, infelizmente, o seu óbito (f. 285).
Feitas essas considerações, o autor juntou perícia criminal particular (f. 308/382) e perícia médica particular (f. 383/432), cuja conclusão transcrevo: ``em 19/2/2015, o paciente não tinha energia física ou energia mental para empreender processos de análise/síntese/conclusão e não podia deliberar ou decidir por si só, não tendo suficiente discernimento sobre suas supostas escolhas; em 19/2/2015, o então paciente não tinha condição mental mínima que lhe permitisse atestar ou doar de forma livre e sem as sombras do pensamento e do sentimento de morte que lhe obnubilavam o senso crítico e o julgamento pessoal''.
A ré, ao contestar a ação e postular a improcedência do pedido (f. 525/548), negou que o autor tinha uma boa relação com o falecido, arguindo que, ``em razão de diversas ocorrências ao longo da vida, estabeleceu relação fraternal com o seu tio, o testador, o qual também sempre lhe dispensou tratamento de verdadeira filha. Ao revés, o autor, que carrega o vínculo sanguíneo, nunca teve bom relacionamento com o de cujus, chegando ao absurdo de sequer tomar conhecimento da internação e do óbito do pai - apenas soube após contato da ora ré, conforme afirmado na exordial''.
Narrou que, ainda aos três anos de idade, passou a morar com o tio, na companhia dos avós maternos, e que ele assumiu o dever de pai, com todos os deveres daí decorrentes, inclusive afetivo e financeiro, já que a suplicada foi fruto de um relacionamento esporádico entre seus pais biológicos, não tendo a paternidade assumida e reconhecida.
Disse que, desde o diagnóstico da ELA, no ano de 2005, foi a ré quem o acompanhou durante todo o tratamento, ``assistindo-lhe em suas necessidades básicas de cuidados diários e dando-lhe suporte na ampla propedêutica médica que se sucedeu. Em todas as suas hospitalizações (citem-se quatro nos últimos 10 anos: Hospital Biocor, em 2008; Hospital Mater Dei, em 2014; Hospital Madre Teresa, em 2014; e Hospital Mater Dei, em 2015), a requerida esteve presente. Veja-se, a respeito disso, os inúmeros relatórios médicos anexados pelo autor, em quase todos, noticiando a ré como acompanhante do tio. A partir de 2012, a dificuldade motora do testador se acentuou, passando a depender de cuidadores 24 horas por dia e a locomover-se através de cadeira de rodas. E, durante todo esse processo de evolução da moléstia, a ré jamais deixou de acompanhá-lo, dispensando os mais sinceros atos de carinho e cuidado''.
Assegurou que, ``nos últimos anos da vida de seu tio, a ré pode `retribuir' todo o afeto e atenção dispensados pelo testador durante toda sua infância, adolescência e formação educacional. Já formada em medicina, a ré teve condições de proporcionar ao tio, além de todo cuidado médico que merecia, alguns agrados, como um aparelho de televisão LED 2014 (Nota fiscal em anexo) e viagens ao Rio de Janeiro, onde ele adorava (junho/2014). Todos os profissionais envolvidos nos cuidados diários do de cujus, acompanhantes e fisioterapeutas, reconhecem a ré como a familiar responsável pelas suas demandas''.
Acrescentou que, ``mesmo com toda a ajuda financeira dispensada pelo pai, o autor chegou ao ponto de propor-lhe injusta ação de alimentos, o que levou ao constrangimento e desapontamento do testador. A relação ficou ainda mais estremecida quando o autor tentou interditar o pai, apenas com o intuito de ter livre acesso ao seu patrimônio. Após este episódio, o autor foi expulso de casa e eles jamais voltaram a conviver normalmente (tudo isso poderá ser comprovado oportunamente)''.
Afirmou que, ``muito embora o falecido estivesse, de fato, em estágio avançado da doença que lhe acometia, esclerose lateral amiotrófica (ELA), as suas funções mentais estavam em perfeito funcionamento até pouco antes do falecimento, que se deu em 21/02/2015. Importante dizer que esta é uma das características marcantes da doença degenerativa ELA: há o alto comprometimento motor do paciente, no entanto, as faculdades mentais ficam intactas, o que acaba aumentando o sofrimento do portador da moléstia. Tanto isso é verdade que, na ocasião da lavratura do testamento, foi colhido relatório médico atestando a capacidade do de cujus, firmado pelo médico neurologista que acompanhou o falecido por mais de uma década''.
Arrematou que a capacidade civil e lucidez do de cujus foi confirmada pelo advogado que assinou o testamento a rogo, Dr. Silvio Augusto Tarabal Coutinho, pelo escrevente substituto do Cartório Triginelli, Dr. Marcelo Augusto Triginelli, pelo advogado testamenteiro, Dr. Manoel de Souza Barros Neto, e pelas duas testemunhas, uma delas o fisioterapeuta do falecido, não se podendo afastar o seu ato de última vontade, que ``nada mais foi que simples reflexo das relações afetivas construídas ao longo de sua existência; decorrência lógica de todo o carinho e afeto que sempre cativou com a ré, sua sobrinha''.
A requerida juntou o parecer psiquiátrico forense de f. 550/558, cuja conclusão também transcrevo: ``Concursados todos os elementos clínicos, da história e dos autos, da literatura disponibilizados neste parecer, afirmamos que o Sr. Francisco Everton Ribeiro, sexo masculino, 76 anos, MG, internado no CTI do Hospital Mater Dei em 12/1/2015 até 21/2/2015, data do seu falecimento, preenchia critérios clínicos para Doença do Neurônio Motor, CID 10 G 12.2 segundo relatório médico emitido em 18/2/2015, por Leonardo Dornas de Oliveira, CRMMG 28803, Neurologista, médico assistente do paciente [...], e que esta doença do sistema nervoso central compromete principalmente a atividade neuromuscular e de músculo esquelético, preservando a capacidade de entender e se determinar. Esta declaração do seu neurologista assistente se mostra comprovada através da análise global do seu prontuário médico, que refere qualquer evidência de que as patologias que levaram o paciente ao óbito tenham comprometido sua capacidade de entendimento ou determinação, estando o testador capaz de entender que um testamento se presta a destinar bens a parentes, amigos, outras pessoas ou entidades que não sejam seus herdeiros necessários [...], e manifestando, no testamento, sua vontade de modo esclarecido e livre. Da análise formal do testamento, todos os requisitos legais estão adequadamente cumpridos, e inclusive nomeado o testamenteiro, advogado de confiança do testador ao longo de sua vida, com a função paga de fazer valer sua última vontade. Sob o ponto de vista da pertinência biográfica da vontade, observamos que Francisco Everton Ribeiro estabeleceu contato afetivo com a sobrinha Fernanda Ribeiro e arcou com custos da sua educação e formação e que assumiu, ao logo da sua vida, vínculo paternal com a sobrinha e que, por parte dela, sempre recebeu afeto, cuidados e amor filial. Nesses termos, declaramos que, sob o ponto de vista psiquiátrico, em estudo retrospectivo, o Sr. Francisco Everton Ribeiro exerceu plenamente sua capacidade civil ao realizar seu testamento público na data de 19/2/2015, na presença do tabelião, advogado, testamenteiro e testemunhas, com relatório médico atestando capacidade civil, devidamente comprovada pela equipe assistente em prontuário médico.''
Juntou, ademais, o relatório médico da lavra do neurologista que acompanhava o paciente, o Dr. Leonardo Dornas de Oliveira, datado de 18/2/2015, segundo o qual, ``a despeito das manifestações neuromusculares, apresenta-se lúcido, com preservação de suas faculdades mentais'' (f. 559), manifestação que foi esclarecida perante o Conselho Regional de Medicina (f. 619/623), além das declarações particulares de f. 560/569, com firma reconhecida, de pessoas que trabalharam com o falecido (motorista, cuidador, fisioterapeuta), abonando as afirmações da ré, no sentido de que o falecido encontrava-se lúcido e conseguindo se comunicar até a morte, mesmo com dificuldades, e de que a sobrinha era quem lhe prestava auxílio, manifestando o Sr. Francisco o desejo de não informar o filho a respeito da hospitalização, ``pois ele sempre foi um filho muito ausente'' (f. 565).
Constam dos autos, demais disso, fotografias, cartas e bilhetes, inclusive em comemoração ao Dia dos Pais (f. 570/618), corroborando a relação que havia entre o Sr. Francisco e Fernanda, desde quando ela era criança, permeada de carinho, cuidado, cumplicidade e afeto, responsabilizando-se o falecido pelos estudos da sobrinha, entre outras atitudes que demonstram que realmente se comportavam como pai e filha, existindo inúmeros outros documentos nos autos confirmando que o falecido foi capaz de manifestar e expressar a sua vontade de assistir a ré no testamento referido, de forma livre e espontânea (f. 624/649).
Logo, por mais que a doença que lhe acometia estivesse em estágio avançado, manifestando-se o falecido com dificuldade, em razão do comprometimento das funções neuromusculares, o Sr. Francisco estava lúcido, no momento de testar, não se podendo afastar o seu ato de última vontade, deixando o autor de apresentar prova cabal a respeito da incapacidade do testador, não se prestando para tanto os prontuários médicos do hospital e a prova documental carreada, da qual não é possível extrair, data venia, que estivesse o testador privado de intelecção e volição.
Se o falecido tivesse sido induzido ou obrigado a testar, bem como a efetivar a doação de outro imóvel, no dia 19/2/2015, o que está sendo questionado em outros autos, algum dos envolvidos na lavratura do testamento teria levantado dúvidas a respeito de seu discernimento, não me parecendo possível que tantos profissionais (médicos, enfermeiros, testemunhas, escreventes, advogados) tenham se enganado ou estivessem em conluio para prejudicar os direitos do autor.
Nesse passo, é fato que o laudo psiquiátrico forense de f. 1229/1281 indicou que, ``no período peritestamento, o de cujus padece de doença mental grave, o que prejudica seu discernimento'', concluindo que ``o de cujus apresentava, em todos os dias da internação hospitalar, insuficiência respiratória, em razão da ELA, agravada por processo infeccioso de origem pulmonar (pneumonia), o que reduz a oxigenação do cérebro e, por conseguinte, já é capaz, por si só, de alterar todas as funções psíquicas do estado mental. Em razão disso, ainda que o nível de consciência tenha permanecido intacto na maioria dos dias da internação hospitalar, poderiam estar alterados a orientação, atenção, memória, sensopercepção, curso e forma do pensamento, juízo de realidade, raciocínio abstrato, insight, julgamento, inteligência e consciência do Eu. Não foi relatado no prontuário se tais funções psíquicas do estado mental estavam alteradas ou normais, porém, poderiam estar, algumas delas ou todas, alteradas, em razão da insuficiência respiratória e processo infeccioso''.
Não obstante, entendo que a referida prova é inconclusiva, também não socorrendo o autor, não se aferindo que o paciente padecesse de depressão grave, como asseverado no laudo, sendo perfeitamente compreensível que um paciente em estágio avançado da ELA, sabedor das consequências da enfermidade, negue-se a se submeter a cuidados paliativos, mas dolorosos e traumáticos, como a submissão a traqueostomia, gastrostomia, ou mesmo o retorno ao centro de terapia intensiva, que poderiam até prolongar, mas não melhorar a sua qualidade de vida.
Ainda que assim não fosse, trata-se de prova emprestada, produzida em outros autos (processo nº 6043096-29.2015.8.13.0024), com o registro prévio de que ``não há, nos autos, no que se refere ao período pré-testamento, nenhuma declaração de vontade, isto é, nenhum documento por escrito assinado pelo de cujus, no sentido de comprovar de forma inequívoca a vontade e o desejo dele, nem gravação de vídeo ou voz, antes do período pré-testamento. Há apenas relatos de declaração verbal, alegações. O pagamento de imposto (DAE), no caso recolhimento de ITCD, realizado com antecedência à assinatura da escritura, não comprova de forma inequívoca a vontade do Sr. Francisco, uma vez que pode ser realizado sem que o mesmo tenha conhecimento disso''.
Outrossim, no caso existem declarações no sentido de que o falecido já havia externado a sua vontade de amparar a sobrinha, em outras ocasiões, deixando-lhe a metade de seus bens, tendo até mesmo manifestado o desejo de deserdar o filho, em razão de sua conduta pessoal, tendo litigado judicialmente por inúmeras vezes contra o genitor (f. 635/637), dizendo o advogado que elaborou a minuta do testamento que já estava com os documentos necessários para tanto, desde o ano de 2014, e que ``faltava apenas a decisão final e a ordem para que fosse efetivado, além da espera dos trâmites legais'' (f. 644/645).
Neste aspecto, não socorre o apelado o fato de o de cujus, no momento de testar, estar impossibilitado de falar e escrever, diante da dinâmica que foi estabelecida e considerando não adotar o Código Civil de 2002 o princípio da oralidade prescrito no revogado art. 1.635 do CC/1916, não podendo se concluir pela alegada inexistência jurídica do testamento, derivada da incapacidade de manifestação oral do testador, havendo circunstâncias que identificaram a sua intenção de produzir o ato.
Assim, discordo da conclusão alcançada pelo ilustre julgador de primeiro grau, na medida em que o conjunto probatório dos autos indica que, a despeito da saúde debilitada do testador, que padecia de doença degenerativa, possuía ele o discernimento necessário para a prática do ato, mostrando-se despicienda, nesse diapasão, a prova oral pretendida pela apelante, e prejudicada a preliminar suscitada de cerceamento de defesa, diante das declarações prestadas, especialmente, diante da autoridade policial, o que impõe a reforma da sentença de procedência, sabendo-se que o magistrado, destinatário das provas, não se encontra vinculado à prova pericial, podendo decidir segundo o seu livre convencimento motivado.
Consequentemente, não tendo sido afastada a presunção de veracidade do testamento público, não se desincumbindo o autor/apelado de seu ônus probatório, com fulcro no art. 373, I do CPC, o provimento do recurso é de rigor, decidindo esta Corte de Justiça, mutatis mutandis:
``Apelação cível. Ação de nulidade de testamento. Testamento público. Incapacidade para testar. Insanidade mental não comprovada. Regularidade formal atendida. Prevalência da declaração de última vontade. Recurso não provido. - O testamento público goza da presunção iuris tantum de veracidade, inclusive quanto à declaração do notário em relação à capacidade mental do testador. - Ausente a prova acerca da alegada incapacidade mental do testador ou da irregularidade formal do documento público, prevalece a presunção de negócio jurídico válido. - Apelação cível conhecida e não provida, mantida a sentença que rejeitou a pretensão inicial.'' (TJMG - Apelação Cível 1.0528.11.001531-0/001, Rel. Des. Caetano Levi Lopes, 2ª Câmara Cível, j. em 6/12/2016, p. em 15/12/2016).
``Apelação cível. Ação anulatória. Testamento público. Presunção de veracidade afastada. Incapacidade do testador no momento do ato. Nulidade. - Ao registrador é atribuída força de presunção de veracidade nas declarações que externa, convalidando o que lhe se apresenta no momento da lavratura do ato, inclusive do testamento público, cuja validade somente é passível de ser desconstituída com produção de prova exaustiva, certa e clara da ocorrência de nulidade. Não poderão lavrar testamento aqueles que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento, conforme o art. 1.860 do CC. É nulo o testamento, ainda que lavrado por instrumento público quando efetivado por testador que não tinha capacidade para fazê-lo naquele momento.'' (TJMG - Apelação Cível 1.0000.21.008956-1/001, Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, 20ª Câmara Cível, j. em 7/4/2021, p. em 8/4/2021).
Por todo o exposto, dou provimento ao recurso para, reformando a sentença, julgar improcedente o pedido inicial, condenando o autor/apelado a pagar honorários sucumbenciais, inclusive recursais, aos patronos da ré/apelante, que fixo em R$25.000,00, em conformidade com o art. 85 do CPC.
Custas processuais e recursais, pelo apelado.
DES. ALEXANDRE SANTIAGO - De acordo com a Relatora.
DES.ª ÂNGELA DE LOURDES RODRIGUES - Acompanho o voto proferido pela eminente Desembargadora Relatora Teresa Cristina da Cunha Peixoto e do Em. Des. Primeiro Vogal, que deram provimento ao recurso para, reformando a sentença, julgar improcedente o pedido inicial.
Ressalto que, nos termos do parecer psiquiátrico forense, após análise de documentos médicos e prontuário do CTI do Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte, apresentado nos autos, consta nos comentários gerais (f. 553 do documento único), ex verbis:
``Comentários gerais: na análise global do prontuário médico não há qualquer evidência de que as patologias que levaram o paciente ao óbito tenham comprometido sua capacidade de entendimento e ou determinação, estando o testador capaz de entender que um testamento se presta a destinar bens a parentes, amigos, outras pessoas ou entidades que não sejam seus herdeiros necessários (descendentes, ascendentes ou cônjuge), e manifestando no testamento sua vontade de modo esclarecido e livre.''
É como voto.
Súmula - DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.
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