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Artigo - Zeno Veloso e suas contribuições para o Direito Brasileiro. União estável.

Flávio Tartuce[1]

Como não poderia ser diferente, seguirei nas minhas homenagens ao Professor Zeno Veloso, que, infelizmente, nos deixou no último dia 18 de março de 2021. Neste texto tratarei de algumas de suas contribuições ao sempre divergente tema da união estável, com três questões jurídicas que sempre eram analisadas pelo grande jurista, seja em suas obras ou em suas brilhantes exposições.

Sobre as últimas, lembro de uma inesquecível palestra por ele proferida, em 1º de junho de 2016, data do seu aniversário, na secular Faculdade de Direito de Coimbra, em evento coordenado pelos Professores Guilherme de Oliveira e José Fernando Simão, do IBDFAM. Na ocasião tratou ele da “união estável brasileira e a união de facto portuguesa”, em painel com os Professores Lucília Gago (Portugal), Geraldo Ribeiro (Portugal) e Giselda Hironaka (Brasil).

A respeito das suas contribuições doutrinárias, de início, Zeno Veloso tratava com profundidade sobre o contrato de namoro, assunto de controvérsia, na teoria e na prática. Nas suas palavras, pela insegurança que envolve a união estável, “para evitar riscos e prejuízos que podem advir de uma ação com pedidos de ordem patrimonial, alegando-se a existência de uma união estável, com o rol imenso de efeitos patrimoniais que enseja, quando, de fato e realmente, só havia namoro, sem maior comprometimento, algumas pessoas combinam e celebram o que se tem denominado contrato de namoro. Já se vê que não é acordo de vontades que tem por objeto determinar, singelamente, a existência de um namoro, que, se assim fosse, nem contrato, tecnicamente, seria”. E, mais, “deixando de lado a questão terminológica e indo direto ao ponto, tal avença, substancialmente, é uma declaração bilateral em que pessoas maiores, capazes, de boa-fé, com liberdade, sem pressões, coações ou induzimento, confessam que estão envolvidas num relacionamento amoroso, que se esgota nisso mesmo, sem nenhuma intenção de constituir família, sem o objetivo de estabelecer uma comunhão de vida, sem a finalidade de criar uma entidade familiar, e esse namoro, por si só, não tem qualquer efeito de ordem patrimonial, ou conteúdo econômico”. Em conclusão, ao sustentar a plena validade desse acordo de vontade, ponderava que “as partes declaram, expressa e inequivocamente, sem conotação de fraude, intuito dissimulatório ou ilicitude, observados os princípios de probidade e boa-fé, e sem violar normas imperativas, a ordem pública e os bons costumes, a inexistência de uma relação jurídica. Em que lei há uma proibição de que isso seja feito? E se não há proibição, em nome do liberalismo, da autonomia privada, da democracia, vigora o secular princípio: permittitur quod non prohibetur = tudo o que não é proibido é permitido” (VELOSO, Zeno. É namoro ou união estável? Disponível em https://ibdfam.org.br/noticias/6060. Publicado em 2016. Acesso em: 20 maio 2021).

Apesar das minhas resistências pessoais quanto à validade desse negócio jurídico, por suposta fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do Código Civil), não se pode negar a força dos argumentos desenvolvidos pelo jurista. Mais do que isso, não se pode afastar a sua contribuição ao necessário debate sobre as limitações da autonomia privada no âmbito do Direito de Família.

O mesmo se diga, especialmente quanto às suas contribuições, a respeito da categoria do chamado namoro qualificado – uma relação não eventual, prolongada no tempo, mas que não se confunde com a união estável –, em expressão difundida por Zeno Veloso. De acordo com o Mestre do Pará, poderia até haver nesse namoro um objetivo de família futura, enquanto na união estável a família já existe (animus familiae), o que traz a diferenciação entre as duas categorias. Mais uma vez, vejamos as suas palavras:

“Nem sempre é fácil distinguir essa situação – a união estável – de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima – inclusive, sexual –, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar – e muito – a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de ‘namoro qualificado’, os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem – ou ainda não querem – constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo do tal namoro qualificado –, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo” (VELOSO, Zeno. Direito civil: temas. Belém: Anoreg-PA, 2018. p. 313).

A expressão difundida por Zeno Veloso passou a ser utilizada pela nossa jurisprudência. Conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado ‘namoro qualificado’ –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício), especialmente se considerada a particularidade dos autos, em que as partes, por contingências e interesses particulares (ele, a trabalho; ela, pelo estudo) foram, em momentos distintos, para o exterior, e, como namorados que eram, não hesitaram em residir conjuntamente. Este comportamento, é certo, revela-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar-se à realidade social” (STJ, REsp 1.454.643/RJ, TERCEIRA TURMA, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 03.03.2015, DJe 10.03.2015).

De toda forma, não há a menor dúvida que as maiores contribuições de Zeno Veloso se deram a respeito da sucessão existente na união estável, tendo sido ele, desde o surgimento do comando, um dos defensores da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, que tratava da sucessão do companheiro ou do convivente. Nas suas palavras sobre o o preceito legal, ele não teria “nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher – se for pobre – literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse” (VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Coordenação Regina Beatriz Tavares da Silva. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 2010).

Em outra obra de sua autoria, o jurista demonstrava claramente seguir a tese da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, aduzindo que: “ao longo desta exposição, e diversas vezes, mencionei que a sucessão dos companheiros foi regulada de maneira lastimável, incidindo na eiva da inconstitucionalidade, violando princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da não discriminação” (VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 185).

Em 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a controvérsia, em sede de repercussão geral. Sete votos já reconheciam a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e a necessidade de equiparação da união estável ao casamento para os fins sucessórios. O julgamento foi encerrado em 10 de maio de 2017, reunido com outra demanda, de debate sobre os direitos sucessórios advindos de união estável homoafetiva. Por maioria, foi firmada a seguinte tese, para os fins de repercussão geral: “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (publicada no Informativo n. 864 do STF). Votaram pela inconstitucionalidade, além do Ministro Relator Luís Roberto Barroso, os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki (e Alexandre de Moraes, em substituição no segundo julgamento), Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Foram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não viam inconstitucionalidade no art. 1.790 do Código Civil. A ementa do decisum foi assim concebida pelo Ministro Relator:


“Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição. 3. Assim sendo, o art. 1.790 do Código Civil, ao revogar as Leis n. 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: ‘No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002’” (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10.05.2017, com repercussão geral).

Pontuo que a doutrina de Zeno Veloso está citada no voto do Ministro Relator, Roberto Barroso, e também nos votos dos Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. Sua doutrina, portanto, foi a vencedora – ao lado da doutrina da Professora Giselda Hironaka – para o deslinde da questão, sanando divergência que então exisitia nos Tribunais Estaduais. Como reconhece o próprio Relator do decisum: “a título ilustrativo, os Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro chegaram a conclusões opostas sobre a questão, ambos em sede de arguição de inconstitucionalidade. O TJSP – a exemplo do TJMG – entendeu pela constitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, enquanto o TJ-RJ manifestou-se pela sua inconstitucionalidade. No Superior Tribunal de Justiça, a controvérsia acerca da constitucionalidade do dispositivo do Código Civil chegou a ser afetada à Corte Especial. No entanto, ainda não houve decisão final de mérito”.

Houve, portanto, uma pacificação sobre a temática, equalizando os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, exatamente como defendia e sustentava o Mestre Zeno Veloso. Como ele sempre dizia, em sua visão não existiriam diferenças relevantes entre casamento e união estável, afirmação que atingiu o nosso Direito Sucessório e que ficou para a posteridade do Direito Brasileiro.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Flávio TartucePRO

Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico


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