NOTA TÉCNICA
O art. 25 da Lei federal 14.206, de 27/09/2021, introduziu o art. 42-A na Lei federal 8.935, vazado nos seguintes termos:
Art. 42-A. As centrais de serviços eletrônicos, geridas por entidade representativa da atividade notarial e de registro para acessibilidade digital a serviços e maior publicidade, sistematização e tratamento digital de dados e informações inerentes às atribuições delegadas, poderão fixar preços e gratuidades pelos serviços de natureza complementar que prestam e disponibilizam aos seus usuários de forma facultativa.
Em vista disto, emergem os seguintes questionamentos: (i) o art. 42-A da Lei federal 8.935 é autoaplicável?; e (ii) as centrais de serviços eletrônicos referidas pelo art. 42-A da Lei federal 8.935 exercem atividade notarial e de registro?.
Afirma-se “…que a atividade notarial e de registro pretende garantir a publicidade, autenticidade e eficácia de atos jurídicos que por meio dela foram formalizados. Em uma só frase: pretende-se conferir segurança jurídica na produção e irradiação dos efeitos dos atos e fatos jurídicos constituídos ou declarados por meio da chancela estatal levada a efeito, neste particular, pelos notários e registradores”1. E mais; que “…os atos notariais e de registro atribuem fé pública à vontade materializada pelos agentes delegados destas funções públicas”2.
Neste contexto, a Constituição da República conferiu o desempenho desta função pública (i) ao próprio Estado (na hipótese das Juntas Comerciais, caso realizadas no exterior ou, segundo atual construção pretoriana, durante a vacância da serventia extrajudicial3); ou (ii) às pessoas naturais investidas no exercício dessa função após aprovação em concurso público de ingresso ou concurso de remoção. Vê-se, pois, inexistir espaço jurídico viabilizador da legitima delegação do desempenho desta atividade à pessoa jurídica de direito privado.
Por esta razão, ao se referir às “centrais de serviços eletrônicos, geridas por entidade representativa da atividade notarial e de registro”, o art. 42-A da Lei federal 8.935 não viabilizou o desempenho da atividade notarial e de registro pelas referidas entidades; e nem poderia tê-lo feito, por absoluta impossibilidade constitucional.
Neste contexto, é induvidoso que as atividades desempenhadas pelas referidas entidades não se qualificam como atividade notarial e de registro. Sem embargo desta acaciana constatação e a despeito de as referidas atividades estarem compreendidas no âmbito da livre iniciativa, o seu exercício poderá sofrer o singular influxo de comandos prescritos em normas de direito público. Isso porque, estando ela umbilicalmente associada ao exercício de uma função pública – ainda que com ela não se confunda –, são constitucionalmente qualificadas como “atividade de relevância pública”4 .
Assim, o art. 42-A da Lei federal 8.935 também tem por finalidade consignar que as entidades representativas da atividade notarial e de registro (i) não desempenham (e nem podem desempenhar) a função estatal na qual os seus associados estão constitucionalmente investidos; e (ii) podem prestar serviços eletrônicos capazes de dar maior capilaridade digital àquela atividade pública.
Além disto, imbricado neste preceito normativo, emerge a induvidosa possibilidade de os notários e registradores permanecerem associados a essas entidades, mesmo quando elas desempenharem esse “serviço de natureza complementar”. Assim, a Lei federal 8.935 tornou inconteste que, nesta condição, os notários e registradores não incidirão na vedação estampada no art. 25 da Lei federal 8.935, pois não realizarão a “intermediação de seus serviços” ou por interposta pessoa (qual seja: a associação).
Em vista do art. 42-A da Lei federal 8.935, haveria necessidade de regulamentação dos “serviços de natureza complementar” à atividade notarial e de registro a ser desempenhada pelas referidas entidades? A resposta é negativa.
Primeiro porque não se pode tolher o desempenho de uma atividade privada ao fundamento da inexistência de regulamentação. Neste sentido, o art. 170, parágrafo único, da Constituição da República prevê que “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Daí a virtude da Lei federal 13.874 – denominada “Declaração de direitos de liberdade econômica” –, ao prescrever a possibilidade do pleno desempenho de atividades privadas à míngua de regulamentação disciplinadora de uma dada atividade inserida no legítimo espectro de atuação particular.
Não se olvide, entretanto, a possibilidade de superveniente regulamentação fixar regras a serem minudentemente observadas pelos particulares no desempenho de atividades que lhes são próprias. Isto se legitima em razão de atos produzidos com base no denominado poder de polícia5 ou, ainda, limitações administrativas em sentido amplo6.
Segundo porque a regulamentação das atividades notariais e de registro a ser levada a efeito pelo Poder Judiciário não irradia efeitos para pessoas que não exercem (e nem poderiam exercer) essa função pública. Daí se afirmar que a regulamentação de uma matéria pelo Estado não ter por destinatários a coletividade em geral7, mas apenas as pessoas encartadas voluntária ou forçosamente dentro da estrutura do Estado8.
Assim, os particulares que exercem uma atividade que lhes é própria (aí incluindo-se as atividades de relevância pública) podem ser indiretamente atingidos pela regulação estatal realizada no campo que lhe é próprio (das relações de direito público). Tanto mais isto é verdade considerando que os denominados “serviços de natureza complementar” prestados por estas entidades farão eclodir relações jurídicas disciplinadas pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor. Afinal, forma-se entre essas entidades e as pessoas tomadoras de seus serviços uma relação disciplinada pelo direito privado.
Neste contexto, não se pode impedir que as referidas entidades privadas prestem serviços que, segundo o art. 42-A da Lei federal 8.935, são complementares à atividade notarial e de registro. Afinal, se estas atividades têm natureza complementar a uma função pública, elas não se qualificam como atividades públicas; pelo contrário, qualificam-se como atividades privadas. Neste sentido, aliás, trilha a Lei geral de concessão (Lei federal 8.987), ao assinalar em seu art. 11 a existência de atividades complementares à prestação de serviços públicos, cuja prestação é livremente franqueada o concessionário de serviço público.
Assim, as entidades privadas referidas no art. 42-A da Lei federal 8.935 podem desempenhar os serviços eletrônicos ali referidos, independentemente de regulamentação.
Cláudio Marçal Freire
Presidente
Rogério Portugal Bacellar
Presidente
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1 ZOCKUN, Maurício. Regime constitucional da atividade notarial e de registro, São Paulo, Malheiros, 2018, p. 81.
2 Ob. cit., p. 97.
3 STF, Pleno, RG-RE 808.202, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 24/8/2020.
4 Sobre o tema: ZOCKUN, Maurício; FRITOLI, Fernanda Ghiuro Valentini. “A prestação do serviço de saúde pelo Estado”, Revista do Advogado, Ano XL, n. 146, junho de 2020, p.106.
5 STF, Pleno, ADI 4.874, Relª. Minª. Rosa Weber, DJe 1/2/2018; e ZOCKUN, Maurício. Regime jurídico da obrigação tributária acessória, São Paulo, Malheiros, 2005, pp. 68 e ss.
6 ZOCKUN, Maurício. Responsabilidade Patrimonial do Estado, São Paulo, Malheiros, 2010, p. 79 (notas de rodapé 4, 5 e 9).
7 ATALIBA, Geraldo. “Decreto regulamentar no sistema brasileiro”, Revista de Direito Administrativo, 97, 21–33. https://doi.org/10.12660/rda.v97.1969.32548, disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/32548/31364
8 ZOCKUN, Maurício. ZOCKUN, Carolina Zancaner. “Relação de sujeição especial no direito brasileiro”, A&C Revista de direito administrativo & constitucional, v. 19, p. 121, 2019, disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/1141
FAQ – PERGUNTAS E RESPOSTAS À APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL 14.206/2021
O art. 25 da Lei federal 14.206, de 27/09/2021, introduziu o art. 42-A na Lei federal 8.935, vazado nos seguintes termos:
Art. 42-A. As centrais de serviços eletrônicos, geridas por entidade representativa da atividade notarial e de registro para acessibilidade digital a serviços e maior publicidade, sistematização e tratamento digital de dados e informações inerentes às atribuições delegadas, poderão fixar preços e gratuidades pelos serviços de natureza complementar que prestam e disponibilizam aos seus usuários de forma facultativa.
Em vista disto, emergem os seguintes questionamentos:
A quem se destina o artigo 42-A da Lei nº 8.935/94, introduzido pela Lei nº 14.206, de 27/09/2021?
Destina-se às centrais geridas por entidade representativa da atividade notarial e de registro, quaisquer delas, tanto estadual ou de caráter nacional.
Como devem ser essas centrais?
Devem ser centrais de serviços eletrônicos, servindo apenas elo entre o usuário do serviço e o cartório.
Quais serviços podem ser prestados por essas centrais?
Devem ser prestadoras de serviços, exclusivamente, complementares àqueles das atribuições dos notários ou registradores definidos em lei, não lhes cabendo a prática de atos da competência exclusiva dos cartórios.
De que forma esses complementares devem ser prestados?
Os serviços devem ser disponibilizados para uso facultativo (não obrigatório) dos usuários, de modo que, as centrais, não devem substituir ou afastar o atendimento direto pelos cartórios.
A Lei é autoaplicável, quer quanto os serviços de natureza complementar e à fixação de preços e gratuidades pela prestação desses serviços?
Sim, a Lei é autoaplicável, independendo de lei estadual ou distrital a estruturação da prestação dos serviços complementares e a fixação de preços e gratuidades pelos serviços dessa natureza que prestam aos usuários, podendo estes ser estabelecidos e fixados pela própria central.
Acesse os documentos em PDF
NOTA TÉCNICA (https://bit.ly/3E1Gc6D)
FAQ – PERGUNTAS E RESPOSTAS À APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL 14.206/2021 (https://bit.ly/3E2FpTh)
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